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‘É um pesadelo que nunca vai parar’, diz líder comunitário em Campo Grande

“Um pesadelo que nunca vai parar”. Esse é o sentimento da comunidade pesqueira de Campo Grande, em São Mateus, diante dos resultados dos exames de urina e cabelo dos atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP. 

O desabafo vem pela voz do presidente da Associação dos Pescadores, Catadores de Caranguejo, Agricultores, Moradores e Assemelhados de Campo Grande de Barra Nova (Apescama), Adeci Sena, bairro onde 78 pessoas se propuseram a colaborar com a pesquisa, intitulada “Avaliação da exposição a elementos químicos em moradores residentes em áreas atingidas pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro em Mariana/MG”, sob responsabilidade da Dra. Ana Carolina Cavalheiro Paulelli e Prof. Dr. Fernando Barbosa Junior, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP).

No total, em São Mateus e Linhares, foram 300 voluntários. Desses, 298 apresentaram arsênio elevado, 79 mostraram níquel acima do normal e 14 verificaram manganês em excesso. Os exames foram feitos em amostras de urina e cabelos coletados em 2017. 

“Como vamos evitar o contato se vivemos aqui, não temos nem água mineral?”, indaga Adeci, questionando a viabilidade de seguir as orientações dadas pela equipe paulista aos moradores das comunidades atingidas pela lama de rejeitos de minério. 

“Quando você tem acesso a esse tipo de substância, quando se afasta, não toma banho no rio, não come peixe nem crustáceo contaminado, ela vai diminuindo do corpo”, explica Adeci, reproduzindo as explicações dos pesquisadores da USP. “Mas estando em contato direto, como nós aqui em Campo Grande, esses metais vão acumulando e causando problemas de saúde cada vez piores”, reconhece, em desespero.

“Tem mais de ano que muita gente aqui começou a ter problema de esquecimento, de câncer”, relata. “Já pensou você morar na beira do rio e não poder mais comer o peixe, o caranguejo, não poder tomar banho? Você nascer aqui e não poder mais?”, pergunta. 

“É muita tristeza. Tristeza por não poder mais viver como a gente vivia. E tristeza por saber que eles contaminaram tudo e que a gente, pra receber o nosso direito, tem que passar por tanta humilhação”. “Até hoje a gente não recebeu as indenizações e os auxílios”, denuncia. “Além de passar por tudo isso, ficar sem tudo o que era nosso, ainda tem que brigar em cima de trilho pra ter seus direitos. É muito constrangimento”, protesta. 

De fato, dos quase mil moradores de Campo Grande, apenas 26 recebem o auxílio financeiro emergencial da Fundação Renova. “Eles dizem que não tem matriz de dano pra manguezal, pra caranguejo”, repete o discurso mecânico transmitido pela entidade que deveria prover os direitos dos atingidos pelo maior crime socioambiental do País. 

Os resultados foram apresentados em reunião pública na última segunda-feira (2), na presença dos pesquisadores da USP e de membros da Secretaria Municipal de Saúde. A Apescama encaminhou, então, ofício aos órgãos de saúde do município e de Justiça do Estado, solicitando: água mineral para todos os atingidos; mais médicos, equipamentos e materiais especializados nas unidades básicas de saúde; análises mensais e confiáveis sobre a saúde e os alimentos contaminados pela lama de rejeitos; e inserção do problema da contaminação por arsênio e outros metais no Plano de Saúde Municipal. 

Mais análises

Os pesquisadores também estiveram em Regência e Povoação, em Linhares, onde moram os outros voluntários da pesquisa. Para todos, a explicação inicial é que as taxas elevadas de arsênio, níquel e manganês precisam ser melhor estudadas, para se tentar estabelecer uma relação direta com o crime das mineradoras. 

De qualquer forma, os acadêmicos encaminharam recomendações aos órgãos de Justiça e do Executivo, para que tomem as medidas necessárias para “salvaguardar suas vidas”, além de recomendarem que os atingidos procurem tratamento médico para os problemas de saúde relatados que podem, sim, ter relação com as elevações dos metais. 

“Em geral, o excesso de manganês, selênio, níquel, arsênio, bário e chumbo pode provocar náusea, vômitos, dor abdominal, diarreia, anorexia, emagrecimento, dor de cabeça, enxaqueca, vertigem, retardo mental, diabetes, anemia, problemas renais e pulmonares, arritmia, infarto, hipertensão, acidente vascular cerebral, doença vascular periférica (arterioesclerose severa sistêmica) e gangrena (pele, pulmão, bexiga, rim e outros tipos). Além disso, o excesso de níquel e arsênio no corpo pode causar alterações na pele, como hiperpigmentação (manchas), descarnação das palmas das mãos e plantas dos pés. Importante dizer que esses sintomas e doenças também podem se manifestar por outros motivos”, explicam os pesquisadores, nos relatórios entregues aos participantes da pesquisa. 

Contaminação crônica

Há dois anos, a contaminação crônica da água e dos animais da zona estuarina e costeira do Rio Doce já havia sido detectada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), que vêm monitorando a região desde o rompimento da barragem de Fundão.

Na ocasião, em palestra na Assembleia Legislativa sobre o estudo, o especialista em ecotoxicologia da Furg, Adalto Bianchini, explicou que os níveis excessivos de metais essenciais como ferro, cobre e zinco nos tecidos de organismos aquáticos podem causar danos oxidativos às proteínas, lipídios e ao material genético (DNA) associados, além de uma situação de estresse oxidativo. “As consequências podem ser alterações nas funções fisiológicas, alterações morfológicas, carcinogênese (indução do câncer) e até mesmo a morte”, disse.

 

No caso dos metais não essenciais à vida, tais como chumbo, cádmio e arsênio, mesmo em concentrações reduzidas, o especialista afirmou ser possível haver absorção pelo organismo e indução dos mesmos danos biológicos, inclusive no ser humano, cujos processos de absorção, acumulação e metabolização dos metais são semelhantes àqueles observados nos organismos aquáticos.

Degredo – direito negado

Em março deste ano, a comunidade de Degredo recebeu, da própria Fundação Renova, resultados das análises feitas nas águas de poços que abastecem a comunidade, reconhecida recentemente como quilombola. Mesmo diante da comprovação, no entanto, a Renova se negou a lacrar os poços considerados sem condições de recuperação e a fornecer água mineral suficiente para os moradores. 

 

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