A Justiça Federal suspendeu por dois meses, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), a ação penal (ação penal nº 5006159-44.2019.4.02.5001/ES) contra o presidente da Kia Motors do Brasil (Brazil Trading Ltda), José Luiz Gandini; o diretor administrativo, Edison Ruy; o grileiro Arnaldo Córdova Duarte; e o engenheiro agrônomo Carlos Alberto de Oliveira. Eles são acusados de uso de documento falso e sonegação fiscal.
A denúncia foi recebida pela Justiça Federal em 8 de abril deste ano e os débitos fiscais já estão sendo pagos à Receita Federal. Em relação ao crime de falsidade ideológica, o advogado de dois dos acusados procurou o MPF e, para analisar a viabilidade de eventual benefício processual. Além dos quatro réus mencionados, outras três pessoas – Amaro de Araújo Pereira, José Alcântara da Gama, Manoel Fagundes Nunes – haviam sido denunciadas no esquema, todas atualmente com mais de 70 anos. Por conta disso, o crime de falsidade ideológica prescreveu para elas.
Segundo o processo, o grupo viabilizou a emissão de três escrituras públicas falsas de imóveis que foram incorporados ao patrimônio da Kia Motors, em agosto de 2010. Os imóveis inexistentes, no valor de cerca de R$ 300 milhões, estariam localizados no estado do Piauí e receberam nomes de Fazenda Curral, Fazenda Boa Esperança e Fazenda Bezerra. A investigação apontou que, em pelo menos quatro oportunidades, em 2010, 2011 e 2012, os documentos falsos foram usados perante a Receita Federal e a Procuradoria da Fazenda Nacional em Vitória, e viabilizaram a obtenção de benefícios tributários ilícitos em favor da Kia, causando prejuízo ao fisco federal.
A Kia Motors, por intermédio de Edison Ruy e José Luiz Gandini, teria contratado os serviços de Amaro de Araújo Pereira Filho (advogado) e Arnaldo Córdova Duarte (grileiro) pelo valor de R$ 61 milhões para a obtenção das escrituras falsas. Os contratados utilizaram seus serviços de “grilagem de terras” e, para obter as escrituras, também contrataram José Alcântara, Manoel Fagundes e Carlos Alberto de Oliveira.
Arnaldo é a peça principal do esquema, como aponta o MPF, por ser envolvido com grilagem de terras pelo menos desde 2003. Ele foi a pessoa responsável por interligar todos os interessados. Fez o contato com João Alcântara, responsável pelo cartório de registro de imóveis Avelino Lopes (Piauí), que falsificou as escrituras; já Manoel Fagundes obteve, com um “laranja”, os documentos que subsidiaram a emissão dos registros dos imóveis.
Já Carlos Alberto de Oliveira foi o engenheiro agrônomo responsável por elaborar e assinar os falsos memorais descritivos que atestavam os limites territoriais das fazendas inexistentes, documentação imprescindível para a lavratura das escrituras públicas de incorporação de imóvel ao patrimônio da Kia Motors.
Em outubro de 2010, as escrituras falsas foram usadas perante a Receita Federal para instruir pedido de restituição de valor de R$ 440 milhões. O pedido foi fundado em créditos de desapropriação que a Kia teria em razão da desapropriação, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), das áreas inexistentes de sua titularidade. Em 17 de outubro do mesmo ano, as escrituras foram utilizadas novamente perante a Receita para instruir petição acompanhada de duas declarações de compensação de crédito tributário no valor total de R$ 210.141.879,24.
Em julho de 2011, as escrituras falsas foram utilizadas perante a Procuradoria da Fazenda Nacional, em Vitória, para instruir requerimento de parcelamento em que os imóveis inexistentes foram dados em hipoteca para garantir dívida de R$ 253.500.950,13 com a União. Em janeiro de 2012, as escrituras foram novamente mostradas à Receita Federal em atendimento ao termo de intimação fiscal para apresentação dos registros de bens e direitos constantes do ativo imobilizado da Kia.
A Corregedoria-Geral da Justiça do Piauí, em correição extraordinária no Cartório da Comarca de Avelino Lopes, apurou os fatos e constatou as fraudes cometidas pelo grupo, com farta prova documental, cancelando as matrículas das fazendas inexistentes. Além disso, foi determinado o afastamento de José Alcântara da Gama de suas funções no cartório.
'Vítima'
Na época da denúncia, em abril deste ano, a diretoria da Kia Motors do Brasil negou, por meio de nota, envolvimento nos fatos denunciados pelo MPF no Espírito Santo. “Desde a instauração do inquérito policial federal, a empresa tem atuado de forma ativa e colaborativa, razão pela qual manifesta o presidente da Kia Motors do Brasil significativa surpresa em razão da decisão do representante do Ministério Público Federal de incluir no polo passivo do processo criminal o presidente e o diretor administrativo da empresa, que não passam de vítimas de terceiros, com os quais jamais estabeleceram qualquer contato”, defende-se a diretoria.
A Kia Motors alegou, ainda, que “após auditoria promovida pela empresa, no ano de 2012, apurou-se que profissionais terceirizados contratados na época para a prestação de serviços na área tributária, munidos de uma procuração específica para representar a empresa na Secretaria da Receita Federal, extrapolaram ilicitamente os limites estabelecidos na contratação, substabeleceram ilicitamente esses mesmos poderes para outras pessoas, à revelia dos representantes da Kia Motors do Brasil, e aparentemente tentaram adotar medidas fraudulentas, circunstância que prejudicou e causou significativo prejuízo financeiro para a empresa”.
E prossegue: “em razão desse episódio, a própria empresa, naquele ano de 2012, comunicou o fato para a Secretaria da Receita Federal e para a Procuradoria da Fazenda Nacional, circunstância que ensejou a abertura de uma fiscalização, assim como, logo depois, o seu encerramento, na medida em que a empresa comprovadamente sempre cumpriu rigorosamente todas as suas obrigações tributárias, e a expedição de ofício para a Polícia Federal, apurar o fato, relacionado aos terceiros fraudadores”.
A diretoria da Kia Motors conclui a nota afirmando que “permanece segura de que a ação criminal será julgada improcedente, no momento oportuno”.