“Eu sabia que meu pai duvidava [não acreditava que era mesmo a filha biológica dele que chegava], mas quando me viu, ainda de costas, ele não teve dúvidas”.
Essa relato do (re)encontro de Joana Pinto com seu pai biológico, há um ano, 31 anos depois de seu nascimento, foi um dos momentos mais emocionantes da longa entrevista, durante o longo café da manhã que tomamos juntas em sua casa no Caparaó capixaba. Longo porque muito envolvente e intenso, a ponto de só percebermos que horas haviam se passado quando seu filho caçula, de pouco mais de um aninho, começou a mostrar sua insatisfação em ter que dividir a atenção da mãe por tanto tempo.
Há meses ensaiamos essa conversa para a matéria. Joana queria, mas relutava. Medo da exposição, própria e da família, receio de julgamentos de terceiros. Mas afirmava: “o que vale é o que você pensa sobre você”. A filha mais velha, hoje com treze anos, lhe encorajou: “mãe, essa é a sua família! Estamos com você”.
Prevaleceu a certeza da importância de falar sobre o assunto, para ajudar outras pessoas que passam por situação semelhante e que, via de regra, estão tão desamparadas, como ela, sem referência, sem apoio. Para, ao recontar a história, entender-se um pouco melhor em meio a toda essa torrente de emoções em que vive há um ano. Para gritar por justiça. Para não enlouquecer, nem se deprimir. Para se reinventar, se fortalecer, seguir em frente.
“Como podem tirar uma criança do seio da família e ficar por isso mesmo?”, suplica. A frase do título é um resumo da vida de Joana até aquela tarde de 14 de setembro, quando recebeu o telefonema de uma de suas irmãs [que ela descobriria depois ser adotiva] revelando a razão do maior sofrimento de toda a sua vida, a rejeição da própria mãe e pai que a criaram, a distância afetiva dos irmãos, a incompreensão, o sentimento de não fazer parte da família, as piadas maldosas de todos os dias.
A mais de mil quilômetros de distância, em Camaçari, no norte da Bahia, a irmã lhe dizia que ela havia sido trocada na maternidade e que a outra vítima daquela tragédia a esperava para que tudo o mais fosse finalmente esclarecido.
Incrivelmente, a outra vítima era conhecida de Joana, trabalhava no mesmo hospital da irmã que lhe dava a notícia. A descoberta se deu na busca por tratamento para a filha, afetada por uma anemia profunda, suspeita de leucemia. Os exames de sangue revelaram a incompatibilidade com os pais. A busca da resposta para o enigma começou no hospital, onde os registros haviam se perdido em uma enchente. Seguiu na polícia, nos cartórios, nas redes sociais, até que Joana surgiu, com sobrenome de solteira, fisionomia familiar. incrível: havia encontrado!
“Estava com meu filho no colo, na rua, as meninas por perto. Quase caí”, lembra Joana. Havia apenas 40 dias que toda a família estava no Espírito Santo, começando uma vida nova, em um lugar tão distante e tão diferente da cidade natal.
Nos dias seguintes, muitas trocas de mensagens e fotografias. “É o olhar da minha mãe!”, disse, aos prantos, ao ver a foto da mãe biológica. Incredulidade, certezas. Alegria, tristeza. A volta à Bahia. Meses de encontros, reencontros, exames, judicialização do caso. Meses que abalaram fortemente as duas famílias.
Dor
Até hoje, ambas as mães e os pais estão adoentados. Depressão profunda, tentativa de suicídio, infarto silencioso, paralisia de membros, pressão alta. Muitos remédios, muita dor. Dor que foi sentida por toda uma vida e que, ao ser revelada a razão, se tornou ainda mais forte, quase insuportável.
Joana também iniciou tratamento psiquiátrico, mas, de volta ao Espírito Santo, optou por outras formas de cura. No lugar em que escolheu para viver com os três filhos e o marido, encontrou, no contato com a natureza, na vida mais livre e leve para as crianças, nas relações com a comunidade, um fio de lucidez e sanidade, de saúde e esperança de “que tudo fique bem, que todos fiquem bem”.
O processo segue em segredo de justiça. Apenas uma audiência aconteceu e foi um dos piores momentos de toda a história que se desenrola há um ano. “Os advogados nem olham pra gente”, dói-se, diante da frieza técnica com que a maior desdita da sua vida é tratada pelos homens da lei.
O hospital Semed, na época o único particular de Camaçari, ainda não se pronunciou. Tentar ganhar tempo, quem sabe forçar a prescrição do processo. Segue como réu, ao lado da Hapvida Assistência Médica, que comprou recentemente o Semed.
Multiparentalidade
Os pedidos são a multiparentalidade, ou seja, a inclusão dos nomes dos pais biológicos nos seus registros pessoais e de seus filhos, e a indenização por danos morais “da forma mais abrangente possível, considerada a circunstância de que esse dano é de natureza constante e até crescente, sabendo-se ser impossível a recuperação plena”, enfatiza a ação movida por Joana contra as duas empresas hospitalares.
“E nesse sentido, a indenização por dano moral deve representar para a vítima uma satisfação capaz de amenizar de alguma forma o abalo sofrido e de infligir ao causador sanção e alerta para que não volte a repetir o ato, uma vez que fica evidenciado completo descaso aos transtornos causados”, argumenta.
“Não há qualquer dúvida quanto ao sofrimento psicológico causado, não se tratando de pequeno incômodo ou dissabor, mas de dor e sofrimento que, se apartando da normalidade, revela-se suficiente a interferir intensamente no comportamento psicológico da parte autora”. “A dimensão do dano moral atingiu seu grau máximo”, assevera.
Intuição
No hospital, a troca dos bebês chegou a ser intuída pelo pai biológico de Joana. “Ele comentou com a minha tia”, conta Joana. O bebê que chegava com as enfermeiras não parecia o mesmo a que a esposa – desmaiada após o parto de fórceps – tinha dado à luz. Mas a tia disse que o cabelinho caía depois do parto, era normal estar diferente. A outra bebê nascera de cesariana e a mãe se recuperava da cirurgia. Ambas genitoras, abaladas pelos partos difíceis, e dividindo a mesma enfermaria, devido à falta de vagas momentânea em quarto de convênio, não se deram conta do que acontecia.
Mas enquanto as duas meninas cresciam, as diferenças físicas e de temperamento assombravam as duas famílias. Aos oito anos, Joana escreveu uma carta onde dizia sobre “essa mulher que se diz ser minha mãe, mas não é minha mãe”. A mãe, ao encontrar o escrito, guardou-o, com muita mágoa. A adolescência foi talvez ainda mais difícil. Aos 17 anos, Joana foi expulsa de casa pela mãe. “Não te conheço como filha”, exasperou.
Trinta e um anos depois, diante da resposta para tantas divergências, as duas mulheres se viram diante de novos enigmas. “Perguntei se ainda podia chama-la de mãe. Ela não respondeu”, lamenta Joana. O pai já lhe afirmou que sim. No compasso do avanço das relações familiares, Joana percebe que, ao se deparar com “a distância [genética] de não ser filha deles”, a aproximou afetivamente. “Me fez admirar quem eles são”, diz
“Eu não sei o que tem mais por vir. Torço pra que todo mundo se recupere da melhor forma. Que meus pais consigam, como me amam, amar a filha deles, assim como os meus pais biológicos amam as filhas deles. Que tudo fique bem, que tudo se equilibre”, roga.