Ex-presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o economista Márcio Pochmann sempre foi um nome importante no debate econômico de esquerda, sobretudo nos núcleos petistas. Atualmente presidindo a Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT), ele esteve em Vitória participando do Seminário Capixaba de Direitos Humanos, realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Na ocasião de sua passagem por Vitória, concedeu esta entrevista ao Século Diário.
Foto: Elaine Dalgobbo
Você veio dar uma palestra sobre reforma da Previdência e Trabalhista e direitos sociais. Como estas reforma influenciam nestes direitos?
Minha exposição trata de situar o problema dos direitos sociais e trabalhistas nestas primeiras décadas do Século XXI no Brasil. Para isso faço uma recuperação histórica buscando estabelecer os nexos causais a partir da década de 30 que abriram as possibilidades do Brasil avançar na inclusão, embora sempre com algumas restrições.
Somente a partir da Constituição de 1988, na verdade, que o Brasil conseguiu dar um salto arranhando o tema do estado de bem-estar social. Começamos a construir um conjunto de iniciativas que colocaram o Brasil no sentido inverso do que está ocorrendo agora no mundo, em que desde os anos 90 vivemos um momento de ampliação da desigualdade social em vários países, uma diversidade de estudos, o próprio [Thomas Pichetty] mostrando a ampliação da desigualdade nos países que eram até referência no enfrentamento da pobreza e da desigualdade.
O Brasil teve no início do século 21 uma convergência em termos de crescimento econômico, democracia e políticas de inclusão social, que de certa forma começou essa década atual de 2010 que está se iniciando agora em 2019, na mesma perspectiva da inclusão com crescimento e democracia. E basicamente entre 2010 e 2014, na primeira metade dessa década, nós observamos a reafirmação deste movimento. Todavia estamos surpreendidos com o que ocorreu a partir de 2015 para cá, que é um movimento totalmente inverso, ou seja, o Brasil hoje não consegue crescer na sua economia, então convive com problemas sociais graves em relação à pobreza, aumento da desigualdade, reaparecimento de doenças que até então estavam superadas, a problemática da violência, mais de 60 mil pessoas assassinadas por ano, Brasil hoje tem terceira maior população carcerária do mundo, uma parte significativa dos assassinatos praticados no mundo são no Brasil.
Então problemas sociais se agravaram numa economia que não consegue crescer e, simultaneamente, nós temos também restrições democráticas, ameaças ao regime democrático brasileiro e, além disso, ao invés da inclusão social, estamos vivendo um período de exclusão social. Então uma década que aparentemente tinha começado com sentido de inclusão, crescimento e democracia está se encerrando e oferecendo para próxima década, aparentemente, uma perspectiva bastante desfavorável.
O governo Dilma terminou numa perspectiva diferente do que havia sido nos anos anteriores. Houve um esgotamento do modelo político e econômico? O que é preciso mudar pensando a possibilidade da esquerda voltar ao poder?
Iniciaria dizendo que o Partido dos Trabalhadores vive algo que vem sendo recorrente em outras instituições de representação de interesses, falando de partidos mas também de sindicatos, associações de moradores e estudantis. O que estamos percebendo, na verdade, é um descolamento dessas instituições de representação de interesses do conjunto da sociedade e sobretudo diante da emergência de um novo sujeito social, que não encontra nas instituições anteparo a suas demandas e seus anseios.
O PT é uma instituição que vai completar 40 anos de existência, que começou no final dos anos 70 e início dos anos 80, quando nós tínhamos uma sociedade que praticamente hoje não existe mais. Tínhamos uma sociedade com a existência de uma vasta classe trabalhadora industrial, uma ampla classe média que saía à rua para defender uma educação e saúde pública, tínhamos uma burguesia industrial que tinha uma postura em relação ao projeto de país. Isso praticamente não temos mais.
Temos uma outra classe trabalhadora, que não tem mais base industrial, está mais no setor de serviços, amplia-se a classe média que é mais proprietária do que assalariada, então tem outra visão de mundo. E há uma substituição inegável de uma burguesia industrial por uma burguesia de comércio, de negócios. Essa sociedade, na verdade, produz um sujeito social que de certa maneira não encontra nas instituições como Partido dos Trabalhadores, outros partidos de esquerda e demais associações e sindicatos que vivem de uma certa maneira uma questão chave de como se recolocam nessa sociedade de serviços que nós estamos vivendo hoje.
Nessa sociedade de serviços, protagonismo vem sendo dado pelas igrejas neopetencostais e também pelo próprio crime organizado, que são as duas instituições que conseguem hoje agregar, movimentar e mobilizar parcelas importantes da sociedade brasileira. Nós temos uma estimativa de que cerca de 80 milhões de brasileiros direcionam-se ao menos duas vezes por semana às assembleias. Assembleias de Deus, Assembleias de Cristo. Há algo que as faz mover nesse sentido. E são instituições que tem uma pretensão totalizadora e não parcializada como é muitas vezes o partido, sindicato que representa uma parte do trabalhador.
Então, nesse sentido, vivemos uma transição e o PT de certa maneira é resultado disso. Realizou agora um congresso interno de renovação, cujo objetivo é tentar se adaptar melhor a esse contexto social, porque a forma de fazer política do passado não encontra eco nessa novidade do presente.
E na política econômica? É necessário também buscar outros rumos?
Na política econômica, nós tivemos mudanças. Não acredito que a política econômica que se iniciou em janeiro de 2003 tenha sido a mesma. Ela foi na verdade se alterando. Foi o governo sob comando na parte econômica sob comando de [Antonio] Palocci, outra coisa foi o governo tendo no Ministério da Fazenda Guido Mantega. De certa maneira, a política econômica foi respondendo às necessidades presentes. Uma coisa foi o PAC, Plano de Aceleração do Crescimento, quando não tinha crescimento, com investimentos em infraestrutura, moldou um outro horizonte diferente do anterior. Obviamente, quando temos a crise da economia global em 2008, também há uma mudança na política econômica, de injeção de recursos nos bancos, por exemplo, da iniciativa do Minha Casa, Minha Vida. Isso deu perspectivas de acordo com a realidade.
Agora, o que nós vamos ter em 2015, de certa maneira, é uma inflexão em relação ao conjunto das políticas econômicas que haviam sido diferenciadas nos períodos anteriores. Mas essa opção pela recessão e de certa maneira por preceitos neoliberais, inclusive, foi reconhecida pela população como uma mudança para além do discurso e a resposta se deu no próprio esvaziamento do apoio que a presidenta Dilma vinha tendo até então.
Por que você fala que houve uma “opção pela recessão”?
Porque foi o governo do PT que praticou a política econômica que levou à recessão, ao instalar o [Joaquim] Levy [ex-ministro da Fazenda], que tinha uma visão de política econômica que de certa maneira levou à recessão. Foi ali que se elevou a taxa de juros, ali que se contraiu o crédito e o gasto público, tomou iniciativas cujo resultado terminou sendo recessão.
Políticas que foram continuadas nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro? Ou vê diferenças?
Veja, entre 2010 e 2014, a economia cresceu em média 3,2% ao ano. É claro que é menos do que vinha antes de 2010, mas tinha um vigor econômico. Se você pega de 2015 a 2019, na verdade a economia caiu um ponto percentual ao ano. O que nós temos de 2015 para cá é uma reorientação drástica da condução da política econômica que se inicia com experimentos neoliberais em 2015 e se aprofunda de 2016 em diante. Obviamente o governo Temer é diferente do governo da presidenta Dilma, mas é diferente na medida de que há um aprofundamento e as iniciativas de revisão dos direitos sociais e trabalhistas já tomam sentido. Porque a reforma trabalhista é feita no governo Temer, a liberalização da terceirização também é feita no governo Temer, e ele não fez a reforma da Previdência que aparentemente era menos profunda do que está sendo aprovada agora, porque o Temer perdeu base política, tanto é que essa medida ficou para ser tomada agora no governo Bolsonaro.
A bola da vez agora está sendo passada para a reforma tributária. Como você vê essa movimentação? O que essa reforma pode gerar para o país?
Na verdade reforma tem uma ideia de modernizar, de melhorar. Mas obviamente o que nós vimos na questão trabalhista e da previdência não é uma modernização, não é uma melhora. Estamos vendo uma deforma, uma deformação. Sobre o tema da tributação, quando se fala da reforma do sistema brasileiro, sabendo que é uma sistema que o tributa fundamentalmente pobres, e que os ricos do Brasil 70% de sua renda não é tributada, que desde 1995 lucros e dividendos no Brasil não são tributados, e só há dois países do mundo em que não tributa isso.
Então quando você coloca a questão de uma reforma tributária, seria porque vai fazer voltar a tributação sobre lucros e dividendos. Mas quando vai analisar as propostas que estão na mesa, não falam sobre isso. Ou seja, são mudanças para manter o mesmo sistema regressivo, tributar os mesmos segmentos. Então é difícil conceber como uma reforma, é mais uma “deforma”, digamos assim, do próprio sistema tributário que está preocupado com a questão de desburocratizar o tributo, com a questão de como se arrecada nos estados e municípios, mas não me parece na verdade que é uma mudança realmente para aliviar o peso do tributo sobre os mais pobres do Brasil.
Falando do Espírito Santo, o estado é o único do eixo Sul-Sudeste-Centro-Oeste que tem um governo de centro-esquerda. Que caminhos acha que deve seguir o governo de Renato Casagrande?
Do ponto de vista geográfico, que você mencionou, é interessante observar que há uma espécie de arco do Atlântico, que sai aqui do Espírito Santo até o Amapá, você tem em todos estados litorâneos uma coloração de centro-esquerda. E o interior do Brasil, se desassociando disso e indo para a centro-direita. É uma questão para se considerar melhor.
Mas de toda maneira, eu quero chamar atenção para o seguinte: desde a década de 90 os governadores estão cada vez mais perdendo papel e importância política no Brasil. Porque nós tivemos a Constituição de 88, que de certa maneira fortalecia a perspectiva da autonomia dos estados, primeira constituição que demarcou o papel dos municípios no país. Mas a despeito dessa pretensão, o que nós tivemos com o acordo da dívida dos estados, a federalização das dívidas que ocorre em 97, da forma como foi feita, na verdade fez com que os governadores perdessem força política. Porque a federalização fez com que a dívida dos estados passassem agora a ser assumidas pelo governo federal, mas comprometeu uma parcela significativa da receita dos próprios estados.
Ao mesmo tempo, levou ao esvaziamento do poder que tinham os governadores em relação a bancos estaduais, a iniciativas voltadas para o desenvolvimento das regiões e dos estados. Tanto é verdade que até o início dos anos 90, até o Plano Real, qualquer iniciativa do governo federal, para ser aprovado no parlamento, pressupunha uma articulação do presidente da República com os governadores, porque os governadores de certa maneira controlavam suas bancadas estaduais. E o que se percebe dos anos 90 para cá é que, na verdade, os governadores perderam importância, eles não controlam bancadas. Hoje as bancadas federais têm uma autonomia e também podemos dizer que os deputados federais, o parlamento federal, não é mais aquele parlamento do início dos anos 80, que na verdade eram parlamentares representantes dos anseios da população.
Hoje os parlamentares são gestores de recursos públicos. Ou seja, cada deputado federal e senador, e também deputados estaduais e vereadores em alguns locais, ele é uma gestor de recursos por conta das emendas impositivas. Então um deputado federal em Brasília tem algo em torno de R$ 15 milhões por ano, ele tem sua própria liberação de recursos.Os deputados federais passaram a se articular com prefeitos, com iniciativas locais, formando uma espécie de feudos, distritos, e passam por cima do governador.
Então os governadores se transformaram em meros gestores de dívidas, gestores na verdade de uma forma de distribuição do recurso mínimo que eles dispõem, então isso faz com que tenhamos dificuldades de ver um governador que é de esquerda e ou governador de direita.
O que está surgindo no Brasil que é diferente do ponto de vista da trajetória do federalismo brasileiro, são esses consórcios de governadores, como surgiu no Nordeste, que se apresentam como um polo que de alguma forma faz um diálogo, abre e força um diálogo diferente com o presidente. Então é difícil ver nas iniciativas diferentes entre os governadores, e as iniciativas dos governos locais não se mostram tão importantes, tão atuantes como essas articulações que estamos vendo agora mais recentemente.
O Espírito Santo é um dos poucos estados brasileiros que ainda manteve bancos públicos estaduais em funcionamento, sem privatizá-los. Que papel esses bancos podem jogar nesta conjuntura?
Essa é uma característica nova do federalismo brasileiro. Com a Constituição de 88 e a preocupação em montar aqui um estado de bem-estar social, cuja experiência sobretudo na Europa se deu basicamente em países de estado unitário, em que o governo federal define. Isso tudo é determinado para todo país. No nosso caso, é uma república federativa, que tem autonomia dos municípios, do estado e do governo federal. Para implementar um sistema de saúde, um sistema único de assistência social, você na verdade precisa de uma articulação direta do governo federal com os municípios.
Isso permitiu uma articulação muito grande dos municípios com o governo federal. E hoje o papel dos prefeitos é praticamente de executores de políticas federais. Tirou um pouco da efervescência que existia nos anos 80, do municipalismo, de uma série de iniciativas iminentes, inovadoras, nos municípios. Isso hoje praticamente representa uma massa homogênea de execução de políticas federais.
E ao mesmo tempo, a gente vai vendo esse esvaziamento dos governadores. Então o Brasil está caminhando para uma espécie de estado unitário, embora seja uma república federativa, porque os poderes dos estados e municípios perderam caracterização e ação nesse sentido.
Então estados que conseguiram manter alguns desses instrumentos como bancos estaduais, agências de regulação, secretarias de planejamento que conseguem olhar a gestão para além de um ano, dois anos, quatro anos, são estados que na verdade podem fazer diferença em relação a outros.
Eu resido num estado, São Paulo, que foi referência por longo tempo por suas instituições de pesquisa e planejamento, de visão de futuro, mas o estado de São Paulo praticamente abandonou isso. Isso foi descaracterizando a forma de fazer política.
Para terminar, como você vê as possibilidades para reverter a atual situação política e econômica do país?
Os 10% mais ricos não têm do que reclamar, a política do governo está excepcional. Por exemplo, ano passado a economia brasileira cresceu um ponto percentual, praticamente nada, enquanto os ganhos financeiros cresceram 7,8%. Ou seja, sete vezes mais. Quem tem dinheiro aplicado no mercado financeiro não tem do que reclamar, está realmente muito bom. Se você pegar a situação do Brasil entre 2014 para cá, a economia brasileira está cerca de 5% a menos do que era em 2014. A produção nacional está 5% inferior que 2014. Se você pegar a renda per capta, ou seja, a renda nacional divida pela população, e tivemos mais de 3% de crescimento da população de 2015 para cá, você tem renda per capta quase 20% menor do que era em 2015.
Se fossemos um país de distribuição equânime na renda, todos nós brasileiros sairíamos com uma renda mais de 7% abaixo do que é em 2014, só que quando você vai ver a distribuição pessoal da renda, os 10% mais ricos aumentaram sua participação na renda em 2%. O 1% mais rico aumentou em 10%. Os 50% mais pobres perderam quase 30% da sua renda. Então nós estamos vivendo num país que praticamente não cresce, mas não cresce e não impede que uma parcela pequena da sociedade esteja se apropriando da renda dos outros. Então esse segmento dos 10% mais rico não tem do que reclamar.
O problema são os 90% da população, que perderam renda mas que se encontram revoltados com a situação atual. Há uma insatisfação generalizada, só que essa insatisfação não consegue convergir para a formação de uma nova maneira política para um outro projeto de país.
Então é uma situação estranha porque na realidade você tem uma fragmentação grande da sociedade, que não aponta uma perspectiva de convergência. Teremos um teste no ano que vem que serão as eleições municipais. Até que medida as eleições municipais, que geralmente tratam de temas mais locais, poderão colocar a questão nacional nesse sentido de construção de uma maioria que seja suficientemente forte para poder fazer um contraponto para o que estamos vivendo hoje? Porque o que estamos vivendo hoje não aponta para uma perspectiva melhor.