Apenas um. Passados quatro anos do maior crime da história da mineração mundial – o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP em Mariana/MG – apenas um dos 42 programas obrigatórios de implementação no território atingido tem sido de fato cumprido pela Fundação Renova.
A constatação é da consultoria Ramboll, contratada pelo Ministério Público Federal (MPF) para realizar as atividades de monitoramento independente dos programas da Fundação Renova na região da Bacia do Rio Doce atingida pelo crime.
Nessa terça-feira (5), a primeira leva de relatórios foi publicada no site do MPF, com avaliação sucinta de 12 programas. Os demais relatórios devem ficar disponíveis até a próxima sexta-feira (8).
A consultoria, no entanto, já adiantou que apenas um dos 42 programas foi finalizado, o de número 37. Dos relatórios publicados, também um apenas teve sua execução aprovada pelo Comitê Interfederativo (CIF): o de número 25, Recuperação da área ambiental 1, voltado a recuperar a primeira área atingida pelo rompimento de Fundão, entre os municípios mineiros de Mariana, Barra Longa, Rio Doce, Ponte Nova e Santa Cruz do Escalvado, por meio de revegetação do solo, reconformação das calhas, restauração florestal das Áreas de Preservação Permanente (APP) e restituição dos ambientes agrícolas produtivos.
Os 42 programas foram estabelecidos no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado entre as empresas criminosas, a União e os governos estaduais capixaba e mineiro, em março de 2016. Mesmo questionado judicialmente pelo próprio MPF, é o Acordo que tem regido a atuação da Fundação, cuja validação e fiscalização das ações está a cargo do CIF e suas Câmaras Técnicas.
Foto: MAB
As falhas apontadas pela Ramboll englobam as principais críticas feitas pelos atingidos, ONGs, movimentos sociais e órgãos de justiça que apoiam os atingidos, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Justiça Global, MPF e Defensoria Pública.
Cadastro de atingidos
No programa 1, por exemplo, de cadastro das vítimas, a Ramboll constatou que já foram gastos 86% do orçamento total planejado – R$ 90,52 milhões dos R$ 105,67 previstos – mas apenas metade (52%) dos cadastros solicitados foi efetivada.
Dos 45 municípios previstos (10 deles no Espírito Santo), apenas em Mariana/MG o cadastramento é feito por uma Assessoria Técnica escolhida pelos atingidos, e esse trabalho é tido como referência.
A Ramboll avaliou que “1.654 pessoas foram previamente consideradas, incorretamente, inelegíveis pela Fundação Renova, sem terem o direito ao cadastro”.
Também confirmou a “falta de transparência do processo de cadastramento, que tem gerado insegurança, boatos e conflitos nas comunidades” e a ausência de participação social no processo, que é considerado pré-condição para a reparação integral dos danos, sendo sistematicamente descumprida pela Renova.
Indenizações
O programa 2, de Indenização mediada (PIM) – voltado ao ressarcimento por danos materiais, morais e lucro cessante e dividido em Dano Geral e Dano Água (para moradores de municípios que tiveram desabastecimento por mais de 24 horas seguidas) – indenizou até agora apenas 31% dos 30 mil núcleos familiares cadastrados, tendo sido gasto 28% do orçamento (R$ 991,4 milhões dos R$ 3,5 bilhões previstos).
Outros 15% dos cadastrados “foram considerados impactados indiretos ou não elegíveis, segundo a Fundação Renova”, critica a Ramboll. Há ainda vários grupos ausentes do PIM: artesãos, ribeirinhos, areeiros, lavadeiras, pescadores de subsistência, coletores de mariscos, agricultores com piquete. Outros estão em estudo preliminar: aldeias indígenas, piscicultores, faiscadores, comunidades quilombolas; e outros dois em discussão: camaroeiros da Enseada do Suá e pescador de fato.
Foto: Leonardo Sá
“Em campo, o que se verifica é uma situação de disputa pelo direito de ser reconhecido como atingido e ter acesso a uma indenização justa, bem como atingidos em busca de alternativas de sobrevivência em condições iguais ou melhores àquelas que possuíam anteriormente ao desastre”, ressaltou a Ramboll, fazendo coro com diversas denúncias noticiadas em Século Diário pelos órgãos de justiça e movimentos sociais.
Auxílio Financeiro Emergencial
No tocante ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), chama atenção o fato de apenas 39% das 29 mil famílias cadastradas receberem esse direito elementar. Destas, apenas 27,5% recebem mais de um auxílio, o que se deve ao reconhecimento apenas de renda principal da família, sendo recorrentemente ignoradas as atividades econômicas secundárias que compunham renda, principalmente as desempenhadas pelas mulheres, que são sistematicamente discriminadas pela Fundação Renova.
“O valor do AFE é insuficiente para cobrir as despesas da família, quando somadas a novas despesas geradas a partir do desastre, como água, remédios e outros”, sublinha o relatório.
A Renova ignora também a vulnerabilidade das famílias atingidas. “Há 19.684 famílias cadastradas em situação de vulnerabilidade, número maior do que o total de AFEs (11.489) concedido até aqui”, pontua.
O auxílio também continua sendo negado a diversos grupos e profissionais impactados, bem como aos moradores do litoral do Espírito Santo, apesar do CIF já ter ordenado o atendimento total desta área, por meio da Deliberação nº 58, de 2017.
A Ramboll calcula que, com a estrutura atual da Fundação, o tempo necessário para que todos os cadastros estejam concluídos seria de três anos e meio!
Manejo do rejeito
Nos programas 23 e 24, voltados ao manejo do rejeito, outra aberração: apenas 2,6% de todo o rejeito derramado sobre o Rio Doce foram retirados até o momento, operação que consumiu 35% do orçamento total.
“A questão central do programa é saber onde está o rejeito e selecionar alternativas de manejo”, resume a Ramboll.
Foto: Fred Loureiro/Secom
A barragem de Fundão armazenava cerca de 54,4 milhões de metros cúbicos de rejeitos, dos quais 44,1 milhões de m³ foram liberados na bacia do Rio Doce, segundo estudo da Lactec, outra consultoria contratada pelo MPF. A região entre a barragem e a Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, em Minas Gerais, concentra a maior parte dos rejeitos vazados, cerca de 31 milhões de m³.
No trecho atingido no Espírito Santo, de 142 km, entre a Barragem de Mascarenhas, em Baixo Guandu/ES, até a foz do Rio Doce, em Linhares, não há ainda nenhuma proposta de manejo dos rejeitos apresentada pela Renova.
Nos outros trechos, em Minas Gerais, as alternativas incluem: remoção mecanizada com posterior disposição em áreas preparadas para esta finalidade ou reutilização como material na construção civil; construção de diques, barragens e reservatórios; recomposição florestal; implantação de sistemas experimentais (projeto piloto) para tratamento das águas; capeamento natural do rejeito localizado no interior dos rios. Porém, boa parte dos planos de manejo para essas ações ainda não foi aprovada.
Pesca e aquicultura
Atividade econômica mais impactada pelo crime da Samarco, Vale e BHP Biliton, a pesca teve apenas 5% do orçamento total de R$ 27,53 milhões implementados para a retomada de suas atividades.
O agravante é que, segundo informações disponíveis pelo Lactec, “não há perspectivas para liberação da pesca de espécies nativas na calha do Rio Doce. Em relação ao ambiente marinho e costeiro atingido, pode haver necessidade de reavaliação da área de proibição da pesca, com eventual expansão desta área”.
“Desde o rompimento da barragem de Fundão até hoje, de 47 municípios que apresentaram pescadores atingidos, representando quase 29 mil pescadores cadastrados, o programa [de retomada da pesca e da aquicultura] realizou ações estruturantes apenas nos distritos de Regência e Povoação, no município de Linhares (ES)”, diz o relatório.
Saúde e Água
A negligência com a saúde física e mental dos atingidos é tamanha, que a Fundação Renova foi notificada pelo CIF devido ao “descumprimento das bases mínimas para definição do programa”. Uma nova versão foi apresentada em junho de 2019 e está sendo avaliada pela CT-Saúde.
“A Fundação Renova tem implementado ações parciais de apoio à saúde dos atingidos, que se restringem apenas aos municípios de Mariana e Barra Longa”, ressalta o relatório.
A Ramboll também verificou que a Renova não celebrou convênios com Fundações de Amparo e Apoio à Pesquisa para desenvolvimento dos demais estudos (Deliberação CIF nº 197/2018), não implementou ações estruturantes de acesso à água potável, tampouco disponibilizou uma comunicação em linguagem acessível aos atingidos sobre os resultados já encontrados.
Especificamente sobre a água (programa 32), a determinação do TTAC é pela garantia de restabelecimento do abastecimento de água de 24 localidades (em 17 municípios), pela implementação de sistemas alternativos de captação e adução de água (redução de 30% a 50% de dependência de captação no rio Doce) e pela melhoria das Estações de Tratamento de Água (ETAs) que tiveram seus sistemas de abastecimento temporariamente inviabilizados.
A situação atual, no entanto, segundo a Ramboll, está estagnada há um ano, havendo ainda 70 mil pessoas sendo abastecidas por sistema emergencial, sendo 30 mil delas por meio de caminhões-pipa.
“O prazo estimado para conclusão dos projetos é outubro de 2020, segundo cronograma atualizado recentemente pela Renova, o que representa um atraso superior a dois anos em relação ao que foi estabelecido pelo TTAC”, destaca.
Evidenciando a prática da mentira, frequentemente utilizada pela Renova, a Ramboll constatou que as chamadas captações alternativas foram implantadas de fato somente em uma – em Colatina/ES – das seis anunciadas pela Fundação e, ainda assim com apenas 40% da vazão indicada pela Renova.
Foto: Leonardo Sá
Sobre o monitoramento da qualidade da água (programa 38), que deve ser feito até agosto de 2027, o relatório mostra que muitas amostras apresentaram problemas no primeiro ano, fazendo com que seus resultados fossem excluídos ou não apresentados de acordo com o método adotado pela Fundação Renova. Dessa forma, foram apresentados apenas 61% dos resultados.
As violações dos valores máximos permitidos pela legislação vigente (Conama 357/2005), ao longo da região monitorada, ocorreu com frequência para os seguintes metais: Alumínio, Arsênio, Cádmio, Chumbo, Cobre, Cromo, Ferro, Manganês, Mercúrio, Níquel, Prata e Zinco.
Ações judiciais
Desde o rompimento da barragem de Fundão, o MPF já denunciou 21 pessoas, dirigentes das empresas criminosas, por homicídio qualificado, além de quatro empresas, por 12 crimes ambientais. Também ajuizou uma Ação Civil Pública no valor de R$ 155 bilhões para reparação dos danos, além de doze outras ações e vinte procedimentos de investigação.