Nova ferramenta do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases) que revela o perfil dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa no Estado impressiona quando se analisa o recorte racial e a defasagem em relação ao estudo. A maior parte dos jovens tem idade entre 17 (28,8%) e 18 anos (28,17%), no entanto, o nível de escolaridade está concentrado no Ensino Fundamental II, o que revela uma defasagem de idade/série de quase quatro anos, mais precisamente 3,7.
Dos 766 jovens que integram o sistema, 96,14% são pretos e pardos, que, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constituem o recorte racial de negros. Apenas 3,13% se declararam como brancos. Por fim, os dados revelam ainda o perfil punitivo e segregador do sistema. Enquanto a medida de internação é aplicada em 84,1% dos casos, a infração mais comumente cometida pelos adolescentes e jovens é o crime contra o patrimônio 46,1%. Crimes contra a pessoa, por exemplo, correspondem a 18,4% do total.
De acordo com informações do Iases, a plataforma, chamada de Observatório Digital da Socioeducação, contribui para o trabalho de pesquisadores e outras instituições, sobretudo quando traz a informação sobre os atos infracionais, agregando na análise do perfil do adolescente.
“Esta era uma informação frequentemente demandada pela comunidade e pelo Sistema de Garantia de Direitos: Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário. A divulgação no site otimiza a atuação destas instituições e complementa o perfil do adolescente/jovem em atendimento socioeducativo no Iases”, explicou a subgerente de Informação e Análise de Dados do Iases, Kelly Cristina Pereira.
Segundo o Iases, a ferramenta foi desenvolvida em parceria com o Instituto de Tecnologia da Informação e Comunicação do Espírito Santo (Prodest), “para, de forma interativa e organizada, ser possível dentre outras informações, consultar o histórico e os dados atualizados sobre o quantitativo de adolescentes acautelados, além do mapeamento dos atos infracionais por município, em todo o Estado. A ferramenta tem oito filtros de pesquisa: residência, comarca, idade, motivo do ingresso no sistema socioeducativo, raça/cor, sexo, escolaridade e data”. Para conhecer basta acessar aqui.
Para Gilmar Ferreira, militante dos direitos humanos, é importante ter ferramentas eficazes para a fiscalização, acompanhamento e controle disponibilizados à população. “Um instrumento como este será relevante se os dados trazidos forem utilizados para implementação das políticas públicas previstas no arcabouço de instrumentos normativos para garantir a vida, integridade física e mental dos adolescentes e ainda todos os direitos, garantindo que de fato sejam vistos e tratados com absoluta prioridade”.
Gilmar enfatiza que é preciso ainda adotar medidas contra a reincidência para que a internação seja a última medida a ser adotada e em casos absolutamente excepcionais. “É preciso adotar medidas e políticas sociais que evitem que jovens e adolescentes parem no sistema Iases. E também adoção de medidas de acompanhamento e proteção dos egressos. Esta ferramenta também deve servir para sensibilizar o sistema de justiça para a necessidade de adotar medidas de desinternação. Caso contrário, será apenas uma ferramenta de marketing governamental”, concluiu.
Pesquisa do Instituto Jones dos Santos Neves, de maio deste ano, já havia revelado que a figura da mãe é, em mais de 50% dos casos, a única responsável legal pelos adolescentes. Enquanto que os pais (pai e mãe) apareceram em 21,8% dos casos e apenas o pai em 7,6%. Entre os socioeducandos entrevistados, 15% já tinham filhos no momento da entrevista, mesmo com média de idade de 16,6 anos.
Os dados relacionados a trabalho, por sua vez, revelaram que, entre os adolescentes e jovens internos do Iases, 82% já haviam trabalhado antes da apreensão, e apenas 18% nunca havia trabalhado. Entre os trabalhos estão vendedores do comércio em lojas e mercados, garçons, lavadores de carro, feirante, ajudante de pedreiro e ajudante de pintor.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas com os próprios socioeducandos, entre os anos de 2015 e 2018, nas unidades de internação da Grande Vitória (Cariacica), Sul (Cachoeiro de Itapemirim), Norte (Linhares) e nas unidades de semiliberdade (Serra e Vila Velha). O estudo foi realizado em conjunto com a Secretaria de Estado Extraordinária de Ações Estratégicas, hoje incorporada à Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH).
Federalização
Em setembro deste ano, às vésperas de deixar o cargo de procuradora-geral da República, Raquel Dodge ajuizou um incidente de deslocamento de competência (IDC) para apurar graves violações de direitos humanos na área de socioeducação no Espírito Santo, que, de acordo com o documento apontou à época, vem ocorrendo sistematicamente desde o ano de 2009 até os dias atuais, passando pelos governos de Paulo Hartung (sem partido) e Renato Casagrande (PSB).
O pedido de federalização, enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), buscava, segundo a ex-procuradora-geral da República, assegurar o cumprimento das determinações do Estatuto da Criança do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atenção ao Atendimento Socieoducativo (Sinase), além de responsabilizar os acusados por violações de direitos humanos. Entre as irregularidades, manutenção de adolescentes e jovens custodiados em instalações inadequadas, insalubres e inseguras, sem condições mínimas de higiene e sem respeito aos direitos fundamentais à saúde, à educação e ao lazer, dentre outros, e sujeitos a toda sorte de arbitrariedades, omissões e violência.
No pedido, Raquel Dodge narrou que chegaram à Procuradoria-Geral da República, em 2012 e 2014, duas representações formuladas pelo Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) e pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES), noticiando graves violações aos direitos humanos praticadas contra adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no Estado do Espírito Santo.
De acordo com o documento enviado ao STJ, o Conanda apontou omissões dos órgãos do sistema de justiça na investigação dos fatos e descumprimento de decisões judiciais pelo secretário de Justiça. A DPES, por sua vez, destacou a ausência de resposta efetiva do Poder Judiciário estadual às gravíssimas violações aos direitos humanos praticadas nas unidades do sistema socioeducativo do Estado. O pedido registra que em ambas as representações foi noticiada e demonstrada a custódia irregular de adolescentes em unidades superlotadas, desprovidas do aparato necessário para assegurar o cumprimento dos direitos previstos no ECA, sujeitando os jovens a todo tipo de maus-tratos e violência, o que teria ocasionando, inclusive, três suicídios e diversos casos de automutilações entre os internos.