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O dever de casa

Quando me pego refletindo sobre estratégias de ação das forças políticas brasileiras que se dizem antagônicas, como direita e esquerda, tenho sérias dúvidas quanto a esse antagonismo. 

Nas últimas quatro décadas, o Brasil saiu de uma ditadura violenta e assassina, numa transição tão pacífica como uma relação de compadres. Passou por governos conservadores, de centro, de esquerda e agora de direita, sem que a população percebesse com clareza a diferença entre uma coisa e outra e, somente nesse momento dramático em que vivemos, em que a voracidade dessa direita faz tanta questão de manter um relacionamento de ódio cristalizado com seus opositores, é que as coisas estão mudando. 

Hoje a diferença é tão clara, que até mesmo dentro dos grupos das redes sociais as pessoas estão excluindo amigos por posicionamentos políticos. As relações encrudesceram de tal forma, que ficou muito clara a impossibilidade de conciliação do pensamento de esquerda com a direita, o que avalio positivamente.

Essa falta de identificação, vivida até o final do governo Dilma, produziu um desserviço tão grande que ficava impossível qualquer qualificação ou desqualificação de cada uma dessas forças. 

Acabava por gerar uma apatia na população, como se fosse tudo a mesma coisa, e que a única coisa que poderia fazer a diferença era a pessoa do governante e não a força política que ele representava, que, aliás, quase nunca era explicitada, nem por ele mesmo. 

Logo de saída, a eleição indireta de Tancredo Neves empossa José Sarney, que representava o conservadorismo, aliado às mesmas forças da ditadura. Na sucessão deste governo de transição, agora efetivado por eleição direta, já aparece uma liderança de esquerda, com o discurso de rompimento com o conservadorismo, num partido representante da massa trabalhadora, que prometia um governo democrático e popular, mas que acabou derrubado na eleição, com o auxílio do grande empresariado das comunicações, leia-se Rede Globo, servindo e representando as elites que fizeram nascer uma “força” supostamente progressista de um governo com uma imagem fabricada, de moralizador, pela “caça de marajás”, na pessoa de Fernando Collor de Melo, que rapidamente se revelou, resultando num processo de impeachment levado pelas mobilizações populares e de rua. 

Na eleição seguinte abriu-se novamente a perspectiva de, finalmente, o Brasil se livrar dessas forças conservadoras e oportunistas, mas o eleitorado ainda, sem a capacidade de identificar esse antagonismo de forças políticas, preferiu passar por um governo dito de centro, que na verdade continuava aliado a essas elites, fortalecido, porque muito útil a elas, de tal forma, que criou em seu próprio mandato o instituto da reeleição passando de quatro para oito anos. 

Finalmente chega o momento em que parecia ser a libertação da nação das garras dessas forças conservadoras, com a vitória de um partido que representava os enganados, os trabalhadores, os explorados, os torturados, mas, para a surpresa de muitos, já iniciou mantendo o diálogo confortável com essas mesmas forças, desde a composição de sua chapa e durante todo seu percurso, na versão “paz e amor”, fazendo aliança com todas essas forças retrógradas nas pessoas dos mesmos algozes de sempre da população, leia-se para o maior espanto: José Sarney, Fernando Color e tantos outros, de maneira que essas mesmas elites se sentiram confortáveis e até amigas desse governo, que elas mesmas protelaram por tantos anos a ascensão ao poder.

Sucederam doze anos de “beija-mão” com os algozes que fizeram dessa esquerda uma versão melhorada do que já vinha acontecendo, como se fosse necessário que assim acontecesse, para prestigiar as classes mais baixas com a saída da miséria, acesso aos bens de consumo e a educação, sem a fundamental ruptura com o sistema opressor e corrupto capitaneado por essas elites empresariais e políticas. 

Somente no quarto mandato, essa esquerda, ainda que mantendo alianças incoerentes como com o PMDB (hoje MDB) na cabeça de chapa, se viu imprensada e resolveu romper com as forças conservadoras, caindo assim num golpe, mascarado de impeachment, devolvendo o poder para as forças identificadas com os militares e sob o comando das mesmas elites, com exceção da Rede Globo, agora transformada, por seu discurso, e pela omissão da própria esquerda, em aliada da esquerda…

O resultado disso é esse governo perverso, violento e “imoralizador” que estamos vivendo, e o pior, que veio como o “gigante acordado” para a necessidade de desmoralizar e massacrar essas forças de “esquerda”, para que fique na memória da população impregnado, como indefensável, ou seja, fazendo com mídia e sarcasmo, sem nenhuma propriedade, o “dever de casa” que a esquerda negligenciou, por pura comodidade ou apego ao poder.

Minha percepção da sagacidade desse governo perverso considera inaceitável sua difusão de ódio e de conflito interno no país, mas reconhece sua eficácia, no sentido da destruição das forças contrárias, levando ao retrocesso, até mesmo do humanismo nas relações entre os cidadãos, porque acima de tudo, vê a importância de destruição das forças adversárias. 

Então eu pergunto: esta não deveria ter sido a atitude da esquerda? Não deveria o governo de esquerda, proveniente das principais forças que derrubaram a ditadura, que só alcançou o poder dezesseis anos após a queda dessa ditadura, priorizar, acima de qualquer coisa, o massacre daquelas forças que vinham de uma exploração, violência e exclusão histórica do povo?

A meu ver a lição que fica é de que não se concilia com a história sem se fazer justiça. Ninguém dorme bem sem se conciliar com o seu passado, colocando as coisas nos seus devidos lugares, identificando e explicitando os erros e, acima de tudo, rompendo e punindo os culpados por todo tipo de barbárie. 

Contudo, também entendo que superado esse momento obscuro, sairemos muito mais fortes e esclarecidos politicamente e poderemos retomar a caminhada que deveríamos ter feito a partir da Constituição de 1988. 

 


Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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