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Ogó: música, afrofuturismo e masculinidades negras

“É um experimento de música instrumental e poesia falada, imaginada, cantada e encantada”, diz a descrição do Ogó, grupo que vem aparecendo com uma sonoridade única na cena musical do Espírito Santo e além de nossas divisas. “Um duo formado por três”? Para entender o Ogó tem que 'tá' moleque. Metade magia, outra metade crítica social, e ainda sobra uma metade para a brincadeira, a ginga, a malandragem.

A paisagem sonora é diversa, como os instrumentos. Os músicos Gessé Paixão e Vitor Martins apresentam o som que vai do Didgeridoo, instrumento de sopro como um mega berrante criado pelos aborígenes australianos, considerado um dos mais antigos do mundo, ao som alienígena do handpan, um dos últimos instrumentos inventados pela humanidade. Pandeiro e caxixi do som afrobrasileiro se somam, assim como trompete, surdina e o cajón peruano. O berimbau eletrônico, tão antigo como moderno, sintetiza simbolicamente a sonoridade. Mas ancestralidade e futurismo se encontram não só no som, mas também na mensagem.

Foto: Douglas Bonella

O terceiro elemento do projeto é Douglas Bonella, produtor e fotógrafo, que também vem construindo um retrato estético do grupo ligado às influências da corrente do afrofuturismo. O objetivo central é provocar reflexão sobre masculinidades negras. Falar sobre o falo muito interessa. “Ogó é a imagem de uma nave espacial cilíndrica em riste e flexível, falicamente em curso de um outro plano, um Orum, até aqui”. Uma nave espacial que pousa numa encruzilhada. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Mais que respostas, o Ogó é provocação, comunicação, movimento, algo que lembra a figura de Exú. 

Não por acaso, pois o grupo busca também nos orixás masculinos modelos possíveis para pensar as masculinidades negras, para além da construção hegemônica branca-cristã-colonial que domina nossos tempos. Atualmente estão produzindo músicas para cada um dos orixás, as primeiras para Exú (Sentinela) e Xangô (Pedreira). A palavra Ogó, na verdade, é o nome do instrumento de madeira em formato fálico carregado por Exú e dotado de grandes poderes.

Foto: Divulgação

O handpan dá o tom ufológico, espacial, extra-terrestre, que traz a ancestralidade ao presente e a projeta para o futuro. E se os negros fossem hegemônicos e dominassem os brancos da mesa maneira como estes impuseram sua força ao longo da história? Como seria esse mundo hoje? É a provocação que traz uma canção sobre o imaginado Dia da Consciência Branca. “Preto pensa. Tu Sentes? Preto sente. Tu pensas nisso?”, diz outro tema provocando a branquitude a refletir ao mesmo tempo que enaltece a pretitude.

O grupo lembra que homens e mulheres, negros livres em África, aportaram escravos do outro lado do Oceano. Mas a diáspora africana, forçada pela escravidão colonial, não destruiu os negros, mas os fizeram outros por aqui. A miscigenação racial e cultural, fruto do amor ou do estupro, constitui um país que ainda não sabe lidar com seu passado, o que dirá então, de seu futuro?

“É nesse espaço, resultado da invasão e invenção tecnológica, onde o corpo negro é máquina – Brasil, onde nascem aos montes muitos homens, androides híbridos e negros é a nossa imagem, a nossa imagem tem o brilho e o negrume de encruzilhas. Luminosos e sombrios”, diz o Ogó. A figura do Capitão do Mato, o negro-mestiço que caça negros rebeldes também aparece, com todas releituras possíveis para os dias de hoje.

Foto: Douglas Bonella

A hipersexualização da negra e do negro no Brasil, lembra o grupo, também são marcas de um processo colonial, que coloca o negro como pedaço de carne, útil desde que aceite a subjugação e seu lugar subalterno. “Dos ingressos de aprisionados em Celas-Senzalas e dos desfiles das filhas branquinhas alienígenas com atestado paternal surge o negão bem dotado, ele é peça, é um produto, é inventado, ele não pensa e se pensar feito um saci ele morre, mas antes o chicote. Quem ordena assim contra essa masculinidade é o senhor. Em bandos nós nos tiramos daqui pra outros mundo, em bandos e agora voltamos pra nossa história, fragmentariamente contar. Patuá que atravessa tempos e mundos, o Ogó nos dirá para onde seguir”.

O Ogó quer falar sobre afetos. Que o falo não seja instrumento de violência, mas sim uma expressão de potência do masculino, que respeita e pede respeito, que usa do vigor mas também permite a delicadeza – e as falhas.

As referências podem vir do espaço sideral mas também das proximidades capixabas. Do professor-doutor da Universidade Federal do Estado (Ufes) Gustavo Forde, que empresta seus escritos para dar potência de fala nas canções, de Kênia Freitas, pesquisadora do afrofuturismo, do artista visual Thiago Balbino, com quem o grupo vem dialogando em sua estadia no Espírito Santo. Musicalmente, a inspiração vem de Milton Nascimento, Moacir Santos, Abigail Moura, Letieres Leite, Naná Vasconcelos, entre outros.

O Ogó surgiu inicialmente com prazo de validade. O objetivo era realizar 10 apresentações e desintegrar a nave no espaço sideral. Transitaram desde uma festa latina no Centro de Vitória até um evento de pagofunk em José de Anchieta, na Serra, passando por uma feira literária, luau, festival de cultura africana, simpósio sobre relações étnico-raciais, feira de alimentos orgânicos, e outros espaços para onde foram convidados ou chegaram humildemente com seus instrumentos e som afrofuturista.

Foto: Douglas Bonella

Cumpriram-se as 10 apresentações e malandramente o Ogó desistiu de acabar. E segue. Preparam-se para a gravação do primeiro EP, com cinco músicas, num cenário propício: o Planetário de Vitória, onde gravarão som e imagens projetadas, criando um registro que possa, quem sabe, eternizar essa existência indefinida da nave Ogó no espaço-tempo.

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