Uma ideia que surgiu há dez anos mas só agora vai ganhando corpo. Historiador, professor, ator, roteirista e estudante de Cinema e Audiovisual, Marcio Miranda Morais terminou o roteiro de Pão de Fel: O Amargo Doce da Vida, adaptado do livro homônimo de Raimundo Rosélio Costa Freire, um dos sequestradores do empresário Abílio Diniz, herdeiro do grupo Pão de Açúcar. A ação, que completa 30 anos nesta semana, é considerada por Marcio como um episódio que marca o fim de um ciclo dos sequestros políticos desde o Golpe Militar de 1964.
A ideia do filme surgiu depois que Marcio, que atuava no movimento estudantil de História, conheceu Rosélio, que voltava à liberdade após cerca de 10 anos de prisão.
“Descobrimos uma pessoa maravilhosa, ideológica e importante para memória de luta e resistência das lutas no país”, disse o cineasta.
Raimundo Rosélio era o único brasileiro envolvido na chamada Operação Carmelo, que em espanhol se remete à caramelo, numa referência ao grupo Pão de Açúcar, criado pela família Diniz.
A intenção do sequestro era angariar fundos para reestruturar a debilitada guerrilha atuante em El Salvador, na América Central. O desfecho foi a libertação do refém e a prisão dos sequestradores.
Outra repercussão, porém, chama atenção no caso, ocorrido em 1989, às vésperas da eleição presidencial, que teve um enfrentamento no segundo turno entre Luis Inácio Lula da Silva (PT) e Fernando Collor de Melo (PTN), que levou a melhor no pleito, o primeiro realizado de forma direta após a ditadura militar no Brasil.
“Era um quadro em que a esquerda tinha boas possibilidades de ganhar pela via democrática e quaisquer deslizes naquele momento seriam cruciais, e é neste quadro que entra toda comoção nacional que o sequestro causou e como ele foi utilizado para prejudicar a campanha do candidato da esquerda na época”, alerta Marcio, comparando os fatos daquela época com as hoje chamadas “fake news” e manipulações midiáticas que estão cada vez mais sofisticadas. “A mídia e agentes de segurança, principalmente de São Paulo, vinculam os sequestradores como correligionários do Partido dos Trabalhadores (PT), fato nunca provado e que causou grandes prejuízos políticos e sociais no pleito de 1989”.
Nesse processo, Marcio entende que os sequestradores não foram atendidos como presos políticos e tiveram algumas das penas mais altas já aplicadas pelo sistema judiciário brasileiro.
Foto: Divulgação
A pesquisa para elaborar o roteiro está divida em dois grandes momentos, num formato híbrido entre ficção e realidade. Conta a história de um garoto pobre do sertão que vai à capital e consegue entrar para a universidade, onde se envolve com a luta social e estabelece contato com grupos guerrilheiros até decidir sair do país e se incorporar a um desses grupos no exterior.
A segunda parte retrata Raimundo Rosélio em seu alistamento como guerrilheiro na América Central e o desfecho no sequestro que culminou em sua prisão junto a parceiros canadenses, argentinos e chilenos. O encerramento se dá em torno das mobilizações em solidariedade aos presos, que chegaram a realizar uma longa greve de fome e receberam importantes apoios políticos na luta por um julgamento justo.
Para construir o roteiro, Marcio baseou-se não só no livro mas também na monografia de conclusão de curso em História que o ex-guerrilheiro realizou pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), em reportagens dos jornais da época, entrevistas televisivas e outras pesquisas e livros relacionados com a histórica contada. O apoio de Raimundo Rosélio, fonte primária, tem sido fundamental para a elaboração do projeto,
Marcio Morais sabe que é bastante audaciosa a proposta de escrever um roteiro de longa-metragem, mais ainda sabendo-se do momento político do país, em que nomes consagrados como o ator e diretor Wagner Moura encontram dificuldades para lançar seu filme sobre o militante e guerrilheiro Carlos Marighella. Mas decidiu seguir em frente, tendo como referências filmes que ajudam a compreender a ditadura, os grupos guerrilheiros e o poder judiciário, como O que é isso, companheiro?, Cabra Cega, Bastismo de Sangue e Lamarca, este último que teve parte das filmagens no Espírito Santo e foi realizado em pleno governo Collor, que de maneira similar a Jair Bolsonaro tentava enfraquecer a estrutura pública que permite algum vigor ao cinema nacional.
“A pretensão é que seja um filme pautado em imagens de arquivos históricos e que tenha sempre uma voz over que possa dar suporte a determinados eventos que podem carecer de explicações à parte dos espectadores mais novos, principalmente por se tratar de fatos políticos internacionais entre outros que parecem propositalmente querer cair no abismo do esquecimento nacional”, explica o roteirista.
Aproveitando a ocasião dos 30 anos do acontecimento, Marcio Morais faz os ajustes finais e tratamentos com apoio de profissionais da área para que Pão de Fel possa ser vendido a alguma produtora ou inserido para concorrer em editais nacionais para realização. “O desenrolar e o desfecho do sequestro já são em si uma história real pautada em ritmos que deixariam qualquer um grudado no sofá para ver o final da empolgante história”, ressalta.