O porto de São Mateus foi um dos principais pontos de chegada de negros escravizados ao Espírito Santo e ao Brasil. Mas a região denominada Sapê do Norte, que engloba Conceição da Barra e São Mateus, também foi um ponto importante da resistência à escravidão, com a formação de diversos quilombos.
O mais importante deles foi o liderado por Negro Rugério na vila de Santana, hoje bairro de Conceição da Barra, com características de um quilombo urbano. É nesse local, no século XIX, que se passa a obra Caburé, peça teatral que será apresentada em três sessões gratuitas nesta quarta e quinta-feira (18 e 19) na Má Companhia, Centro de Vitória.
A obra é fruto de uma longa pesquisa realizada a partir do Instituto Cultural Tambor de Raiz, de Conceição da Barra, incluindo diversas visitas aos quilombos remanescentes para buscar a história oral mantida pelos moradores. Na trama aparecem personagens como o próprio Negro Rugério, além de Constância de Angola, Silvestre Nagô e Benedito Meia-Légua, ícones da resistência à escravidão no Sapê do Norte. A partir da pesquisa do Instituto, a dramaturgia e direção foram construídas por Nieve Matos, do Repertório Artes Cênicas, contando também com direção de arte de Antônio Apolinário.
Foto: Bru Negreiros
Nas visitas às comunidades, os artistas perguntaram aos quilombolas como gostariam de ser retratados e praticamente uma unanimidade foi a vontade de não ver os negros retratados como fracos ou fujões. A peça então retrata justamente a organização política do negros para a resistência, seja fortalecendo a produção de farinha de mandioca para comprar a alforria dos escravizados como para adquirir mais armas e treinar o povo à luta.
“Se trata da consciência de quem estava no quilombo mas não estava feliz. Porque se eram livre lá, a mesma liberdade não os acompanha a outros lugares nem a garantia de liberdade de parentes que permaneciam escravizados. E se a liberdade não os acompanhava, era necessário abrir esse caminho, ainda que fosse necessário pegar em armas para isso”, conta Didito Camillo, ator e idealizador da peça. Ele lembra das falas de Gessi Cassiano, um das anciãs que vive no quilombo de Linharinho: “Quero que vocês entendam que eles estavam se preparando para a guerra, e guerra é matar ou morrer. Então era uma preparação para o corpo e para alma”.
Uma das canções que aparecem na apresentação de Caburé, cuja trilha sonora foi composta por Elinho Guimarães, diz que “a boca que canta toada é a mesma que convoca para a guerra”. Aliás, as presenças da música e da festa são marcantes no espetáculo, que tenta trazer o cenário do cotidiano no quilombo onde os negros se articulavam na luta por liberdade.
Sapê do Norte é conhecido justamente pelos diversos festejos e manifestações de cultura popular afrobrasileira, que vão fazer parte da peça. “Numa fala de Silvestre Nagô dentro da obra, ele diz que um homem sem alegria não consegue lutar pela liberdade, a alegria precisa estar fervilhando para ter força. Se houver só momentos tristes, ele já entra fraco na guerra. Então apesar de todo sofrimento, tanto no quilombo como na senzala existiam as festas, como forma de sobreviver a toda aquela situação ruim”.
Foto: Bru Negreiros
Didito acredita que a peça, que ele buscava construir há quase 20 anos, tem um significado especial no atual momento histórico do país, em que a exclusão e ódio aumentam e os grupos mais frágeis precisam de pensar estratégias de resistência para sobreviver, além de ser um momento de perseguição às artes, exigindo que os artistas se posicionem e a utilizem como ferramenta de luta.
Tanto Didito como Elinho e Fabíola Guimarães, uma das atrizes do elenco, são netas de Pedro Aurora, considerado um dos maiores tiradores de versos que o Sapê do Norte já viu, tendo levado cultura e informação às diversas comunidades da região por meio de seus versos que rimavam e contavam histórias. Por isso, depois das apresentações na capital capixaba, Caburé vai seguir ainda em dezembro para ser apresentada nos quilombos de Sapê Norte, aos legítimos herdeiros dessa história e cultura de resistência.
AGENDA CULTURAL
Apresentação do espetáculo teatral Caburé
Quando: Quarta-feira (18), às 19h e quinta-feira (19), com duas sessões, às 18h e 20h
Onde: Má Companhia – Rua Professor Baltazar, 152, Vitória/ES
Entrada gratuita, com retirada dos ingressos no local a partir de uma hora antes da apresentação