Desde a tradição filosófica platônica, se cristaliza o ser dicotômico, uma alma presa a um corpo, ela não é desse mundo, mas precisa vivê-lo. A partir daí, a unificação desse ser se transforma numa guerra de conceitos, embrenhada na realidade, pulsando de forma mais latente na religiosidade e todo o universo fica separado entre duas partes: bem e mal, positivo e negativo, preto e branco, luz e sombra, material e espiritual, etc.
Afinal, o que temos? O que somos? Como nos apresentamos, nos definimos, nos percebemos?
Quando saímos das teorias e partimos para a rua, conseguimos perceber que o ser não se prende a teorias e muito menos aos comportamentos estudados e apresentados como modelo.
O ser se revela! Encontra sua identidade, às vezes se moldando aos modelos disponíveis, e muitas vezes inventando seu próprio modelo e surpreendendo o mundo.
Neste mês tive o prazer de acompanhar dois eventos que quero ilustrar a ideia de revelação do ser.
O primeiro foi inusitado; no bairro Gurigica, aconteceu o Ritmos Urbanos – Evento, com competição de danças urbanas promovido pelo Encontro de Danças Urbanas EDU. Desses eventos em que o ser está muito além dos estereótipos sociais. Preocupado com ele mesmo, sua satisfação, autorrealização, ou seja, se fenomenizando. As expressões corporais, faciais e relacionais estão na essência da realização do ser, sua preocupação é interior e o resultado acaba encantando os que assistem, pela naturalidade e beleza dessa realização em movimentos livres e espontâneos.
Ali o ser se apresenta em sua completude, onde seus impulsos internos se revelam em movimentos, sem “regulamentos” estéticos, mas numa estética admirável e plena que diz: Eis-me aqui!
O segundo quadro social que quero apresentar para ilustrar a revelação do ser é o Natal no Parque Moscoso. Ao contrário do exemplo anterior, ali o ser se identifica, fortalece e abraça o modelo definido no mundo moderno, onde o lugar comum é a vitrine.
Aquele lugar, marcado na memória dos capixabas como área de brincadeiras, interação, correria, admiração dos animais, e tantas outras memórias, se transforma em painel de fotografias. As pessoas enfrentam enormes filas para posicionar seus filhos numa imagem alusiva ao Natal, fotografam e saem em busca de outra imagem para o mesmo fim, e o pior, as crianças, totalmente adestradas a esse interesse, mais preocupadas em fazer pose que se divertirem. Sim, essa é a nova ordem! Mais que estar aqui, preciso mostrar que estou aqui.
Fiquei refletindo: O que acontece? Qual é a diversão? Está mais importante produzir a imagem que usufruir dos eventos? Afinal, tudo é imagem?
A conclusão é que o “efeito manada”, enquanto caminho mais fácil, é sempre mais contagioso que as revelações próprias do ser. Somente a consciência da liberdade sartreana que, além da possibilidade de escolha, impõe a necessidade/obrigatoriedade de escolher, na pura expressão: “O homem é condenado a ser livre”, possibilita a revelação do ser. É fazendo suas próprias escolhas, se revelando, como no caso da dança urbana, ou se deixando levar pelo modismo e a formatação do comportamento do caso Parque Moscoso (que não deixa de ser uma escolha), que o ser tem sua “pena”: responder pela consequência dessa escolha, na opção própria de sua autenticidade, ou inautenticidade, que sempre vai transparecer de sua ação.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia