Historiador André Pereira explica que o descaso com os mais vulneráveis, pelo governo federal, contamina o EscoLAR
A imposição de atividades pedagógicas não presenciais aos 240 mil estudantes da rede estadual – e, por tabela, a significativa parcela das redes municipais do interior do Estado – por parte da Secretaria de Estado da Educação (Sedu) é um grave, mas ainda recôndito, descompasso no contexto maior de atuação do governo do Estado frente à pandemia de Covid-19.
Se por um lado, o governo de Renato Casagrande (PSB), assim como os demais governadores do País, assumiu a maior independência possível em relação ao governo federal no tocante à construção de uma “nova cultura” – como ele refirma seguidamente – comprometida com o distanciamento social, vê-se, por outro lado, a pasta comandada pelo secretário Vitor de Angelo aplicar, avidamente, o receituário ditado por Abraham Weintraub, o ministro da Educação de Jair Bolsonaro que insiste em negar a possibilidade de adiar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com a mesma veemência com que Bolsonaro nega a gravidade da pandemia, que já ceifou a vida de mais de dez mil brasileiros, segundo os dados oficiais, sabidamente subnotificados.
Conteúdo ruim
No Espírito Santo, a incorporação do modelo defendido pelo governo Bolsonaro e o CNE tem se dado desde o dia 15 de abril por meio do Programa EscoLAR, em que atividades pedagógicas não presenciais estão sendo transmitidas em quatro canais de TV aberta – contratados pelo valor de R$ 1,1 milhão pelo período de 30 dias – e o diálogo entre professores e estudantes se dá por meio da plataforma EscoLAR, abrigada no Google Sala de Aula. As aulas foram cedidas pelo governo do Amazonas e podem ser assistidas por estudantes das redes municipais também, mas a plataforma só está disponível na rede estadual, havendo então soluções diferenciadas de diálogo sendo criadas por cada município.
Após fortes críticas de entidades representativas de professores de história e geografia, evidenciando a péssima qualidade do conteúdo dos vídeos cedidos – que incluem até citações a Olavo de Carvalho como filósofo, sem qualquer embasamento científico – a Sedu lançou edital para que professores da rede estadual gravem vídeoaulas, batizando a estratégia de IdeAção.
Mas a tentativa de melhorar a qualidade e regionalizar o conteúdo não resolve o problema, afirma o professor André Pereira, do departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), membro da Associação Nacional dos Professores de História (Anpuh-ES).
Sem diálogo
A raiz do problema começa com a falta de diálogo da Sedu com a categoria de profissionais de Educação. Ausência essa que é histórica da pasta, governo após governo, mas que não teve alteração substancial com o atual secretário.
Entusiasta do Ensino à Distância (Ead) e suas variações – alardeadas como melhor solução para o Brasil pela Fundação Todos Pela Educação – Vitor de Angelo admitiu, na entrevista coletiva de lançamento do programa, em abril, que o EscoLAR já estava praticamente pronto no início de 2020, pois ele “não surge [em sua gestão] por causa da pandemia”, mas que o isolamento social se mostrou como o momento ideal para lançá-lo.
A mesma independência adotada pelo governo Casagrande na busca pelo isolamento social, em contraposição ao governo federal, afirma André Pereira, deveria acontecer no contexto da Educação, na defesa da suspensão das avaliações anuais e reposição integral das aulas presenciais, como reivindica parcela significativa dos professores e pesquisadores, seja individualmente ou por meio de entidades representativas, como Associação dos Docentes da Ufes (Adufes), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo (Sindiupes) e associações como a de geógrafos e de História (AGB-ES e Anpuh, respectivamente).
“O EscoLAR estava previsto como reforço das aulas presenciais. Mas mesmo como reforço, é grave. Qualquer decisão relativa à educação tem que ter a participação da categoria profissional, um debate público”, explana André. “Esse debate nunca aconteceu”, afirma. Nem sobre o EscoLAR original nem sobre a universidade estadual, em gestação pelo governo de Casagrande, e que prevê cursos de EaD.
“Fazer algo improvisado é só uma maneira de encobrir as coisas. Sem diálogo, qualquer ação é uma solução canhestra. E o resultado é o aprofundamento das desigualdades”, sentencia.
Nesse sentido, afirmam que, “se podem ser válidas tarefas e atividades não presenciais de complementação e reforço de conteúdos já dominados pelos estudantes, entendemos que é bastante temerário o ensino de novos conteúdos por essa via”.
A grande questão, explicam, “é que aprender novos conteúdos escolares não se reduz a assimilar novas informações. trata-se de um processo que pressupõe o envolvimento integral do aluno no processo de aprendizagem, não se limitando ao âmbito cognitivo, mas requerendo necessariamente a mobilização de processos afetivos, que participam da própria construção de sentido daquilo que se aprende”, sendo preciso estar alerta “para a atitude oportunista de certos grupos sociais e empresariais que estão transformando o drama social que estamos atravessando em uma ocasião para empurrar e naturalizar as tecnologias do ensino à distância”.
“Queremos a tecnologia como ferramenta para promover um ensino maximamente humanizador, que torne mais potente o professor em sua atuação formativa. Não é isso que está se desenhando no atual cenário”, apontam. “É lamentável, nesse sentido, que Fundações Privadas que trabalham para a reforma empresarial da educação, como é o caso do Todos pela Educação, assumam protagonismo no debate sobre os encaminhamentos da educação em nosso país no contexto dessa pandemia”, expõem.
Precarização do trabalho
Além das evidentes perdas para os estudantes, especialmente os mais vulneráveis, o professor André Pereira alerta ainda para as perdas para a categoria profissional. O modelo empresarial de ênfase em aulas remotas impõe uma precarização sem precedentes ao trabalho do professor.