A ânsia de chegar ao destino subtrai as belezas da viagem
É o movimento que gera a vida e todas as coisas!
Há uns 2.500 anos, Heráclito estabelecia um ponto de vista para a existência do mundo a partir da dialética: é tudo fruto da oposição de contrários, do conflito, é esse movimento de um lado a outro que gera a realidade, simbolizado pelo fogo, a transformação. A frase emblemática de sua filosofia é: “ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio” – o rio não é o mesmo e nem a pessoa é a mesma de um momento para o outro.
O mundo moderno, contemporâneo ou pós-moderno, e todas as outras definições maravilhosas que inventamos para autoqualificar o nosso momento nele, me parece que elaborou Heráclito com valores quantitativos. Chegamos a uma realidade em que o movimento, além de intrínseco, precisa ser rápido, impulsionado pelo lema “tempo é dinheiro”.
Seja na aceleração da safra com o “melhoramento genético da semente”, na adição de fertilizantes ao solo para apressar o trabalho da terra, ou a toda a arquitetura logística focada na eficiência, quase sempre o tempo de execução é o quesito determinante. Até mesmo a prestação de serviço, que exige dedicação humana, está sempre se reciclando para a eficiência, se aproximando cada vez mais da automação, do autoatendimento, da agilidade no “fazer”.
Os deslocamentos cada vez mais rápidos, veículos terrestres, aquáticos e aéreos se aperfeiçoando em velocidade na busca de encurtar o tempo da viagem, para entregar no “destino” o quanto antes, cumprindo sua função.
Resulta dessa estranha cultura, de impor velocidade ao movimento, um frenesi contagiante de retroalimentação própria, que qualifica a eficiência e também extrapola, do mundo eficiente para o mundo íntimo. Ficar parado, mesmo que de folga, férias, desemprego e agora pandemia e isolamento social, é inadmissível, é preciso estar em produção, estudar, escrever livros, praticar exercícios, no mínimo executar o ócio criativo de Domenico de Masi.
Essa atividade intensa, barulhenta e rápida, internalizada nas pessoas, produz um ser inquieto, se não está trabalhando eficientemente, rapidamente, cumprindo suas metas, cada vez mais exigente consigo mesmo – da meta à superação – está andando, conversando, comprando, viajando, visitando, “atuando”, “fazendo”.
Muitos gerúndios…
A voz que eu daria à pandemia grita: “pare”, “sossegue um pouco”, “cale a boca”, “entre em reflexão quanto ao ritmo de sua vida”, “faça uma análise de suas rotinas e veja quanto tempo foi dedicado a viver, e quanto a produzir”, “compare sua necessidade de produção com a de viver, e veja o que está fazendo com sua vida, agora que estamos em tempos de espreita da morte”.
Enfim, o que as pessoas que estão com seu trabalho suspenso pelo isolamento social precisam fazer? Devem espelhar-se em Boccaccio? Shakespeare? Newton? Afinal, é mesmo preciso apresentar um produto ao pós-pandemia?
A meu ver, as pessoas precisam mesmo é se manterem vivas, com saúde, inclusive, e por que não dizer principalmente, mental. Cuidar de sua própria vida, fazer o exercício de se libertar de grandes necessidades que o escravizavam, a exemplo da hegeliana Dialética do Senhor e do Escravo. Perscrutar-se.
Em minha reflexão percebo os equívocos que vivíamos: um mundo frenético, se retroalimentando constantemente de seu próprio frenesi, atônito frente à pandemia e à importância do sujeito dar conta de si e de seu próprio mundo objetivo, à sua maneira, subjetivamente. Sua higiene, sua aparência, sua casa, seus livros, discos, brinquedos, seus animais, plantas, seu mundo derredor, seus próximos (incluindo pais, filhos, irmãos, agregados, vizinhos), ou seja, seu próprio contentamento, em todas as dimensões, entregue a você mesmo.
Pós-Coronavírus é difícil de imaginar, até por que pós é uma afirmação otimista de que, ele passará e nós passarinhos, e a ciência ainda tateia no escuro, mas presumo que: higiene – como hábito e possibilidade garantida a todas as classes sociais, controle de aglomeração pela garantia do espaço individual, confortável e seguro, formas de servir e ser servido, conviver (no sentido de viver com), alteridade, generosidade, solidariedade são para toda a vida e não só nas crises. Muitas das descobertas de novas formas de trabalhar e se relacionar que estão sendo construídos na pandemia precisam ser transformadas em rotinas.
Nesses pós, a pressa deve ser sacrificada e traduzida na atitude do sujeito comum, em esperar um próximo coletivo, se o primeiro chegar e não tiver acento; preferir andar a pé ou de bicicleta, cultivar o tempo para a convivência. Podemos chamar de curtir a viagem.
O consumo deverá ser considerado, pesado, medido sua necessidade e, acima de tudo, o mundo íntimo deve ter uma importância maior que o mundo externo.
Entender o movimento em sua dialética harmônica, como processo criador e por isso delicado, com seu próprio tempo de ida e de vinda, para saborear a vida em suas múltiplas faces de alegria, tristeza, facilidades e dificuldades, com a solidez de um ser em seu mundo bem construído e seguro, à revelia das circunstâncias, é muito mais heracliano, nos colocando partícipes da criação.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia