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Cruciais para geração de emprego, microempresas e MEIs são desprestigiados pelo Estado

Fundo de Aval do Bandes não fez qualquer adaptação burocrática para salvaguardar o setor

Divulgação

Os números oficiais contabilizam um universo de 761.524 empregos formais atualmente no Espírito Santo, assim distribuídos, segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento (Sedes): 50 mil deles gerados pelos MEIs (Microempreendedores Individuais) existentes (6,56% do total); 201.467 pelas microempresas (26,45%); 204.175 pelas pequenas empresas (26,81%); 93.727 pelas médias (12,30%); e 212.155 pelas grandes (27,85%).

A verdade invisibilizada pelos dados oficiais, no entanto, é que o primeiro “emprego” garantido pelos MEIs e microempresas é o de seus proprietários. Entre aspas porque, neste caso, não se pode falar em emprego oficialmente, mas, na prática, cada vez que um MEI ou microempresa fecha, tem-se basicamente duas possibilidades, a salvo situações de óbito e aposentadoria: ou o motivo é a contratação de seus antigos proprietários como empregados de alguma pequena, média ou grande empresa; ou, mais triste e infelizmente mais comum, o que acontece é o acréscimo de mais desempregados nos dados oficiais que, até então, inviabilizaram esses “empregos de fato”.

Assim, numa estimativa sem qualquer rigor científico, apenas guiada por uma curiosidade jornalística, percebe-se que a contribuição real desses dois minúsculos – 252.217 MEIs e 122.869 microempresas, segundo a Sedes – é, na verdade, muito maior do que estabelecem os relatórios dos bancos e secretarias de Estado e, mesmo, as versões mais generosas, defendidas por instituições como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que agrega, em seu escopo de atuação, as micro (com faturamento anual de até R$ 360 mil) e pequenas empresas (até R$ 4,8 milhões), e calcula que ambas representam cerca de 98,5% das empresas privadas do país, 27% do Produto Interno Bruto (PIB) e 54% do total de empregos.

Aliás, com faturamentos a lhes distinguirem de forma tão aguda, é fácil perceber que, ao unir micro e pequenos num mesmo pacote de oferta de empréstimos ou benefícios bancários – como o fizeram o Bandes de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes) e o Banco do Estado (Banestes) para operacionalizar o Fundo de Aval criado pelo governo do Estado para o período da pandemia de Covid-19 – as micro são simplesmente esmagadas pelas pequenas, que, nesse recorte, se tornam gigantes, com até 13 vezes mais faturamento.

Os MEIs, por sua vez, assim classificados desde que faturem no máximo R$ 81 mil por ano, possuem semelhança muito maior com as micro, que são apenas quatro vezes e meia maiores que eles.
Pois bem, ao considerar os respectivos proprietários dos Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJs), o total de “empregos” gerados pelos MEIs seria de 302.217, enquanto as microempresas responderiam por 324.336 de um novo total de “empregos”, que subiria para 1.136.610, correspondendo, então, a 26,58% e 28,53%, respectivamente.

Há ainda uma terceira conta que merece consideração, pois a realidade dos pequenos comércios, especialmente os que compõem as economias das periferias da região metropolitana e nas pequenas cidades do interior do Estado, é salvaguardarem a subsistência de ao menos um familiar do proprietário, que pode ou não ser sócio formal. Assim, representaria 1.259.479 “empregos”, sendo 447.205 gerados pelas microempresas, ou 35,50% do total, enquanto os MEIs contribuíram com 23,99% do total.

Incrível como uma superficial e leiga humanização dos dados muda sensivelmente a percepção sobre os setores da economia mais importantes a serem apoiados num momento de crise como a estabelecida pelo novo coronavírus.

De 6,56%, os MEIs sobem para a importância de 26,58% a 23,99% dos “empregos”. As microempresas, de 26,45% para 28,53% a 35,50%. Somados, ambos corresponderiam a mais da metade (entre 55,11% e 59,49%) do total de trabalhadores que têm sua renda e dignidade salvaguardadas por esses minúsculos empreendimentos individuais e domésticos.

Já as pequenas, caem de 26,81% para 17,96% a 16,21%. As médias, de 12,30% para 8,24% a 7,44%. E as grandes, de 27,855 para 18,66% a 16,84%.

Grandes subsídios e pequeno impacto social
Se já está posto o motivo do crescimento de importância de MEIs e micro ao se considerar a sustentação dada a cada CNPJ a seu respectivo proprietário, a redução da participação de pequenas, médias e grandes no universo total de trabalhadores aos quais elas garantem, diretamente, renda e dignidade, acontece pelo fato de que esses três últimos universos empresariais constituem um número absoluto muito menor de pessoas jurídicas. As pequenas, por exemplo, são em número de 17.219 e, as grandes, apenas 2.916. E, entre seus proprietários, estão empresários que possuem mais de um negócio em seu nome, entre outros arranjos que não cabe detalhar aqui.

E mesmo considerando a geração indireta de empregos, a percepção real e humanizada não muda muito o tamanho da contribuição desses gigantes no contexto geral, muito menor, na prática, do que fazem pensar as elites econômicas e políticas que deles se beneficiam e se dedicam a compensar a insustentabilidade econômica, social e ambiental da voracidade de seus negócios por meio de isenções e benefícios fiscais que se renovam governo após governo e são estimadas em cerca de 1 bilhão por ano, no Espírito Santo.

“O efeito multiplicador de grandes empreendimentos que já estão instalados é muito pequeno. Não tem o mesmo impacto quando da época de construção. Porque a compra é muito pequena e muitas dessas grandes empresas compram fora do Espírito Santo’, explica o economista Arlindo Villaschi, professor titular aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Exceção, ressalva, “acontece em setores como o metalmecânico, que você tem umas oito ou dez empresas que têm uma parte razoável do faturamento dependendo dos grandes empreendimentos”.

Estado ausente

Nos momentos de crise, a negação de fatos cruciais para a construção de uma realidade verdadeiramente próspera e justa mostra sua face mais cruel. Até o momento, com o Brasil como um dos principais epicentros da pandemia de Covid-19, não há ainda nenhuma política pública, federal ou estadual, minimamente capaz de honrar a importância do conjunto dos menores empreendimentos e empreendedores para a saúde econômica dos bairros, municípios, estados e do país como um todo.

Dados da Fundação Getúlio Vargas indicam que o Brasil alocou cerca de 2,9% do PIB em medidas econômicas de apoio aos mais vulneráveis – bem menos que os 6,3% dos EUA ou 17% do Reino Unido e Espanha –, em “medidas insuficientes para dar conta da complexidade da crise que já está instalada”, informa a economista Érika de Andrade Silva Leal, professora da Coordenadoria de Engenharia de Produção do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) e pesquisadora do Observatório do Desenvolvimento Capixaba (ODC).

No Espírito Santo, prossegue, o pacote econômico do governo estadual é de R$ 300 milhões, “o que não representa nem 1% do PIB capixaba”. Além do pequeno valor, ressalta Érika, “a natureza das medidas anunciadas é majoritariamente voltada ao alívio do fluxo de caixa das empresas, não privilegiando o pilar da criação de uma rede de proteção social, que para o caso capixaba ficou quase que exclusivamente na dependência do auxílio anunciado pelo Governo Federal”.

De fato, no dia 28 de março, o governador Renato Casagrande (PSB) anunciou as medidas econômicas para apoiar o isolamento social decretadas dias antes, como forma de reduzir a velocidade de propagação do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde. O anúncio foi de postergação de impostos, empréstimos e medidas de desburocratização, e foi feito em coletiva de imprensa, juntamente com os secretários de Estado de Desenvolvimento (Sedes), Maurício Kneip, de Governo (SEG), Tyago Hoffmann, da Fazenda (Sefaz), Rogélio Pegoretti, além dos presidentes do Banestes,  José Amarildo Casagrande, e do Bandes, Maurício Duke.

Sobre os empréstimos, foram três as ações anunciadas, sendo duas delas suportadas pelo Fundo de Infraestrutura, com um valor total de R$ 100 milhões, dos quais R$ 30 foram destinados a MEIs, artesãos e artesãs e pessoas da economia solidária, para obtenção de empréstimos de até R$ 5 mil com pagamento em até 48 vezes, sem juros ou correção e seis meses de carência.

Outros R$ 70 milhões foram destinados a empréstimos para microempresas (até R$ 360 mil/ano de faturamento), que podem tomar até R$ 31,5 mil, com juro zero e correção pela Selic (hoje, em 3,75%), até seis meses de carência e pagamento em até 48 meses.

Essa medida, no entanto, acentuou o secretário Marcos Kneip na ocasião, é apenas para as microempresas que possuem ao menos um empregado e que não fez nenhuma demissão recentemente, pré-requisito a ser comprovado pela análise da Relação Anual de Informações Sociais(RAIS) da empresa. A finalidade, justificou, é apoiar a manutenção de empregos, “reconhecendo o esforço de quem não demitiu empregados”, mesmo durante esses primeiros dias da crise do coronavírus. Por isso, durante a vigência do financiamento, o microempresário se compromete a manter a empregabilidade do seu empreendimento.

Todas essas medidas, enfatizou Tyago Hoffmann, são complementares ao que o governo federal fez junto às empresas que faturam acima de R$ 360 mil/ano, disponibilizando R$ 40 bilhões para financiamentos com custo da taxa Selic. “O foco do Estado são as empresas e empreendedores com faturamento inferior a esse”, frisou.

Fundo de Aval

As medidas estaduais foram formalizadas dias depois, em projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa que criou o Fundo de Aval do Bandes – uma espécie de garantia extra para a aprovação das propostas de financiamento.

No dia 14 de abril, no entanto, em pronunciamento em suas redes sociais, o governador informou que o Fundo de Aval aprovado pelos deputados, “inicialmente pra financiar projetos de empresas com até 360 mil reais de faturamento, então microempresa”, seria estendido “para pequena empresa, com faturamento até 4,8 milhões”, “para mais empresas terem direito e acesso ao crédito das nossas de linhas de financiamento que o Banestes e o Bandes vão operar”.

No dia 22 de abril o portal do governo do Estado publicava as regras do Fundo de Aval, cujos R$ 100 milhões são distribuídos em duas linhas de crédito: “Microcrédito Emergencial Covid-19, cujas propostas poderão ter valor de até R$ 5 mil, e a linha Capital de Giro Emergencial Covid-19, cujo valor de contratação é de até R$ 31,5 mil”.

A primeira, voltada a “MEIs (…), autônomos, cooperativas de agricultura familiar capixaba e associações de pequenos agricultores familiares, associações e colônias de pescadores, marisqueiros e assemelhados, assim como associações de pescadores profissionais artesanais e agricultores, que apresentem inscrição no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar – CAF ou Declaração de Aptidão ao Pronaf – DAP Jurídica até que a CAF tenha sua implementação concluída; e sindicato de agricultores familiares, se financiável”.

A segunda, destinada “exclusivamente para o financiamento de até três folhas de pagamento de microempresas (ME), Empresas de pequeno porte (EPP), Cooperativas de agricultura familiar capixaba, Sindicato de agricultores familiares e associações de pequenos agricultores familiares, Associações e colônias de pescadores, marisqueiros e assemelhados, Associações de pescadores profissionais artesanais e Associações de aquicultores”.

Mais de um mês depois de disponibilizadas, as linhas de crédito do Fundo de Aval teriam aprovado pouco mais de 10% das propostas, a ponto do próprio governador admitir recorrentemente que é preciso reduzir a burocracia imposta pelos bancos, sempre que é questionado sobre as dificuldades enfrentadas pelos empreendedores de menor porte no Estado.

“Eles começam a criar uma série de obstáculos exatamente para inviabilizar, pulverizar o recurso”, avalia o professor Arlindo Villaschi. “Quando vejo uma pequena loja passando por problemas, eu não quero que ela abra por questões de saúde pública, mas ela tem que ser objeto de uma política pública pra manter o emprego, que muitas vezes é do próprio proprietário. Eu não conheço micro empresas que tenham muito empregado. Quem trabalha? Mulher, tia, marido. Então chegar pra ele e dizer: ‘eu agora vou cobrir a sua folha de pagamento’. Que folha de pagamento?”, questiona.

‘Cinismo’

“São coisas muito cínicas”, indigna-se. “Veja a burocracia, as garantias exigidas! Não fizeram adaptação praticamente nenhuma. Em alguns casos baixaram a taxa de juros, mas a burocracia continua a mesma”, expõe o economista.

“É um mundo desigual que eles insistem em perpetuar. Não existe nenhuma adequação de Bandes e Banestes para a atual situação. São os mesmos produtos que estão sendo oferecidos. É lamentável que percam a oportunidade”, critica.

A dificuldade em disponibilizar opções realmente viáveis para os micro, afirma Arlindo Villaschi, se dá por “falta de competência pra ‘pensar fora da caixinha’, dos chamados riscos, cadastros, uma série de burocracias do próprio Fundo de Aval”, aponta. “Eles estão muito mais acostumados a tratar com médias e grandes empresas, que dão menos trabalho porque um único empréstimo cobre mais do que 30 a 40 micro e pequenas”, relata.

“A preocupação continua a mesma: nós não estamos com uma política que reflita a necessidade social e econômica do momento. Querer que o proprietário de uma microempresa vá sobreviver se não tiver um mínimo de acesso pra garantir o trabalho dele, da mulher, eventualmente um ou dois filhos, é uma crueldade”, lamenta, citando também a falta de assistência a trabalhadores uberizados, artesãos, informais e da economia solidária.

Nova cultura

“É preciso criar uma nova cultura”, conclama. Cultura essa que começa a se expressar por meio dos já existentes bancos comunitários, mas que, no momento, ainda são “lamentavelmente muito pressionados pelas burocracias do Banco Central e consequentemente com capacidade menor de se reproduzirem”.

“Desde sempre economia sem o ser humano como parte central não existe. As instituições que estão aí não são para os pequenos comerciantes, quando deveriam ser. Eles são os grandes colchões de absorção das crises, principalmente crises sociais”, roga.

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