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‘Por que morre-se mais nos hospitais públicos?’, questiona doutora em Bioética

“Condicionantes sociais da saúde” são a resposta, diz Elda Bussinger. O remédio? Investimento em atenção básica

Divulgação

“A saúde suplementar [privada] é ‘SUS-depentente’. Os hospitais privados todos se sustentam com a venda de leitos e serviços para o SUS [Serviço Único de Saúde]”. 

A afirmação da doutora em Bioética e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Elda Bussinger, contém muito mais do que um neologismo crítico que expõe o quadro doentio em que se encontra a dimensão financeira da saúde pública e privada no Espírito Santo e no Brasil. É parte de um tripé que responde à pergunta feita no título da matéria: “Por que morre-se mais nos hospitais públicos?”.


Em coletiva de imprensa concedida nessa segunda-feira (22), o secretário de Estado da Saúde, Nésio Fernandes, afirmou: 42% dos pacientes internados nos hospitais públicos do Espírito Santo evoluem a óbito; no Brasil, o percentual é de 52,4%, e nos privados, 30%. “A quantidade de pacientes que evoluem para ventilação mecânica [no tratamento da Covid-19] nos hospitais públicos é muito maior que em hospitais privados”, disse. A pergunta continua: por quê?

Pergunta que, encarada com a honestidade e a coragem demandadas aos gestores públicos em tempos de pandemia, pode, ainda, mudar os rumos da crise e, verdadeiramente, salvar vidas, especialmente as das populações mais vulneráveis social e economicamente.

A outra parte da resposta, pontua Elda Bussinger, passa pelas Organizações Sociais da Saúde (OSs), que administram a maior parte dos hospitais estaduais, incluindo o Dr. Jayme Santos Neves, considerado o maior e mais moderno hospital do Estado e a principal referência em Covid-19 no Espírito Santo.

“A grande questão é a seguinte: as OSs são falsas organizações sociais. Elas não visam o interesse público”, afirma. “A natureza jurídica delas não é de empresas, mas na prática elas atuam como verdadeiras empresas privadas. Do ponto de vista jurídico, possuem sim diversos mecanismos de lucratividade”, conta, citando uma recente listagem feita pelo jornal Valor Econômico, em que constava, entre as empresas mais lucrativas do Brasil, uma grande OS.

Condicionantes sociais

Fechando o tripé, estão as “condicionantes sociais da saúde”. “Temos hospitais públicos muito melhores do que muitos privados”, compara a vice-presidente da SBB. “Hospitais privados têm hotelaria melhor, mas dizer que são melhor equipados e têm profissionais melhores, não! O fato é que o paciente que chega no público está em condições mais graves que no privado”, esclarece. 
E por que ele chega em piores condições, como o próprio secretário reconhece? Devido às condicionantes sociais da saúde, responde Elda, elencando aspectos como renda, grau de instrução, tipo de moradia, saneamento básico, alimentação, falta de orientação adequada e de acesso ao serviço de saúde no tempo devido.

“Os determinantes sociais da saúde são as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem, incluindo o sistema de saúde. Essas circunstâncias são moduladas pela distribuição de renda, poder e recursos em nível global, nacional e local, e são influenciadas por decisões políticas. Os determinantes sociais da saúde são os principais responsáveis pelas iniquidades em saúde – as diferenças injustas e evitáveis entre pessoas e países”, informa a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) em citação à Organização Mundial da Saúde (OMS), afirmando que o conceito “torna claro o entendimento da saúde como um processo social e revela como aspectos sociais e decisões políticas impactam as condições de vida e saúde das populações, bem como a ocorrência de doenças”.

“Nós teríamos como fazer com que as pessoas chegassem nos hospitais em situações menos graves”, assegura Elda Bussinger. Como? Investindo na atenção básica de saúde.

Resultados muito melhores, afirma, ainda podem ser obtidos com essa mudança de prioridade e demandando volume muito menor de investimentos, se comparado com o que já foi feito em expansão de leitos da rede pública e contratualização da rede privada. A formação e capacitação de equipes de atenção primária são muito mais baratas e é a única política pública de saúde que garante a atuação preventiva, seja nos casos de Covid-19 ou de qualquer outra doença.

“Noventa por cento dos problemas de saúde das pessoas se resolvem na atenção básica. Por que 90% dos recursos da saúde vão para a atenção terciária?”, inquire, desafiando o que ela chama de “cultura brasileira e capixaba de compra de leitos e serviços na iniciativa privada”.

“No Direito nós falamos o seguinte: por que o empresário ganha dinheiro? Porque ele assume o risco do negócio, ao passo que o trabalhador tem garantido o seu salário. Na saúde, as OSs não têm o risco do negócio”, compara. “O dono de uma empresa tem que construir seu galpão e equipá-lo. As OSs não fazem isso”, reforça, utilizando mais uma vez o Jayme Santos Neves como exemplo. “O governo do Estado construiu a área física e equipou com o que há de melhor. Daí contrata uma OS e coloca o dinheiro necessário pra ela funcionar. Que risco tem nisso? Nenhum. Tem gestor de OS no Brasil ganhando R$ 400 mil por mês”, revela.

Trinta anos
“Mais de 80% dos recursos da saúde estão nas mãos da iniciativa privada”, estima Elda, seja por meio da gestão dos hospitais públicos feita pelas OSs, seja por meio da contratualização de leitos e serviços de hospitais privados com dinheiro público. Isso no Brasil e no Espírito Santo.

A supremacia das OSs teve início na década de 1990, logo após a criação do SUS, com a reforma de Estado promovida pelo economista Carlos Bresser Pereira, então ministro do presidente Fernando Henrique Cardoso.

A teoria que justificou a reforma, conta Elda, ainda está em voga: o serviço público é lento, ineficiente e tem corrupção, e somente as OSs podem resolver esse problema, pois não visam lucro e são de interesse público. Foi o discurso que antecedeu a construção do Jayme, inicialmente chamado de “novo Dório Silva”.

Uma pesquisa nacional conduzida pela doutora Ligia Bahia entre 2014 e 2018 e da qual Elda participou, no entanto, mostrou que a teoria é uma grande mentira. As OSs não demonstraram eficiência, relata, e escondem uma caixa-preta que abriga muita corrupção e drenagem de dinheiro público.

A pesquisa – Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal no Brasil – teve financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e envolvimento de oito universidades brasileiras e se debruçou sobre as dez maiores OSs do país.

Mesmo periférico no processo de expansão das OSs, que ainda se concentra no eixo Rio de Janeiro e São Paulo, o Espírito Santo vivencia as mesmas contradições constatadas na pesquisa, com conhecidos casos de afastamento de OSs por corrupção e inacreditáveis recontratualizações das mesmas, pouco depois, pelo governo.

Os contratos de gestão, que orientam as condições de contratualização, são aditivados seguidamente, conta Elda, sem que as metas iniciais tenham sido cumpridas e qualquer auditoria na prestação de contas. “Do ponto de vista jurídico, é preciso cumprir as metas para que os aditivos contratuais sejam feitos. Mas na maioria das vezes, isso não acontece. E não há um sistema de auditoria preparado pra tal”, denuncia. 

Novos rumos

A cultura da contratualização da rede privada pelos governos é o que sustenta a “SUS-dependência” do capital privado de saúde no Brasil e no Espírito Santo, impedindo que a atenção primária em saúde prospere em todo o seu potencial e fazendo com que pacientes do SUS cheguem nos hospitais em condições de saúde mais precárias que os da saúde suplementar. E morram mais, seja por doenças crônicas ou pandemias virais como a Covid-19. 
“O Brasil teria a possibilidade de mostrar um baita serviço para o mundo [no enfrentamento ao coronavírus] a partir de uma estratégia que se baseasse na atenção básica. Nenhum país do mundo possui um edifício tão bem estruturado na atenção básica quanto o Brasil. Nós temos uma rede que é capilar, que chega na ponta, na casa das pessoas. É muito bonita a atenção básica, porque é uma construção fantástica. As equipes estão estruturadas, as pessoas estão dentro dos territórios, conhecem as famílias. Se essas equipes estivessem capacitadas, aparelhadas, com oxímetros, para chegar na casa das pessoas, testar, pegar as com mais possibilidade de contágio e separar, encaminhar para a internação precoce e evitar a complicação do quadro respiratório …”, descreve a especialista, deixando nas reticências espaço para a imaginação do leitor concluir um quadro mais humano e digno para os brasileiros e capixabas, a partir de uma mudança radical nos rumos da condução não só da crise, mas dos investimentos públicos em saúde.

“Nada é simples quando os gestores têm que tomar decisões. Mas numa pandemia como essa, eles são chamados a correr risco”, instiga a especialista em bioética.

Aos três meses da pandemia no Estado, uma possível correção do curso das prioridades em investimentos sinaliza tardia, mas, considerando a ainda perigosa aceleração das contaminações e a falta de uma estimativa segura de alcance de um platô e estabilização da curva, pode, ainda, ser capaz de salvar muitas vidas, especialmente entre as populações mais vulneráveis. “Ainda há como reverter essa situação”, sugere.


Painel Covid-19

O Painel Covid-19 desta terça-feira (23) confirmou mais 45 óbitos e 1.078 casos, totalizando, respectivamente, 1.432 mortes e 37.225 casos pela doença no Espírito Santo até o momento. A taxa de letalidade média do Estado está em 3,85%.

O isolamento social nessa segunda-feira (22) foi de 45,35% segundo o portal Coronavirus.es e de 38,1% segundo medição da InLoco. A taxa de ocupação de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é de 84,87% na Grande Vitória, de 82,05% na região norte, de 76,47% na região central, de 63,51% na região sul e de 81,72% na média estadual.


Falta de transparência na contratualização de leitos pode resultar em mais mortes

Preferência da gestão Casagrande pela ampliação via rede privada e filantrópica reforça apelo por fila única e hospital de campanha


https://www.seculodiario.com.br/saude/ate-que-ponto-o-estado-tem-autonomia-pra-decidir-sobre-lockdown-fila-unica-para-utis

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