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Capoeira para demitidos

Tempos difíceis, tem até doutor na fila do auxílio desemprego

Tudo começou com a aula de capoeira. Perrera passava por acaso numa ruazinha acanhada, e o outdoor colorido foi como um raio de sol nas trevas: “Capoeira para demitidos: aprenda a lutar por seus direitos”. Espantou-se, o que capoeira tem a ver com demitidos? Perrera estava demitido, deprimido, desprovido e sem perspectivas na vida. Mais por curiosidade e falta do que fazer, entrou.

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O cartaz prometia 10 primeiras aulas grátis. “Pra ver se gosta”, a atendente esclarece. “Servem cafezinho?” Meio dia e Perrera ainda não havia forrado o estômago. “Mais um demitido”, ela ri. “Olha, não humilha, você pode ser a próxima”. Tempos difíceis, tem até doutor na fila de auxílio desemprego. “Tem torradas na lata e café na térmica”. Perrera faz a inscrição, esvazia a térmica e acaba com as torradas. Senta num banquinho e espera os outros alunos chegarem. Cochilou e acordou com um grito de guerra,: um sujeito alto adentrou o recinto aparatado de capoeirista faixa preta, cabeça raspada.

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“Cadê nosso aluno número cem, Marielba?” Perrera se apresenta e o cara o envolve em exuberante abraço, “Vamos lá, irmão, mexe as pernas, quero ver se leva jeito. Demitido e subnutrido, o novo aluno faz uns meneios que viu um capoeirista fazer na TV, e o instrutor dá uma gingada de perna, jogando-o no chão, “Vamos em frente, aquecimento e concentração”. A sala está tão vazia como restaurante em tempos de quarentena, “E os outros alunos?” indaga. “Todo mundo na moita, sabia não? Aula agora só de home office. Tu é o único corajoso”.

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Três pessoas em um recinto acanhado e nenhuma de máscara: põe coragem nisso. “Escuta meu irmão, academia é assunto sério. Exercício físico é atividade essencial, tá todo mundo pirando na claustrofobia”. O sujeito lhe passa outra rasteira e Perrera cai de cara no chão. Foi quando a ficha caiu também… “Não te conheço de algum outro lugar?” Ele diz que não, “Só se moraste em Salvador”. Perrera não foi à Bahia nem lavou escadaria de igreja, mas nunca esquece uma cara, seja com careca ou cabeleira… “Elvis! É você, cara? Não se lembra de mim? Assisti a todos os seus shows na Boate Cascavel… pudera, eu era o porteiro”.

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O sujeito fica ofendido, “Ledo engano, aluno. Nunca vesti roupa apertada de cetim azul e branco, capinha com galão dourado, topete engomado. O amigo está equivocado, não era eu. Onde já se viu Elvis mulato?” Perrera libera uma risada, “Era o que o povo perguntava, mas gostavam do seu rebolado. Dona Dondina, sua mãe, costurava as roupas e a Maria do Arrependimento, sua mulher, bolava a coreografia. Como tu suava, cara! Era muito legal, tudo em família!”.

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Elvis suspira, resignado, “Bons tempos, bons ventos. Suava feito cachoeira, mas criei os filhos. Hoje tudo formado e sumido no mundo, com vergonha do meu rebolado. Sabe como é, onde chego alguém lembra. Ridículo, mas nunca passaram fome”. A moda Elvis passou e a gente tem que se adaptar, foi o Darwin quem disse. “Tava indo bem aqui, mas com a praga do 19 sumiu todo mundo. Sem alunos e sem auxílio-vírus, vê se solta aí uma grana que tu comeste meu almoço”.

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Como dizia Dona Dondina, não há mal que sempre dure, não há crise que não se desgaste: veio a vacina e a vida voltou à normalidade. O povo esqueceu e nenhuma lição se tirou do isolamento social e da carência alimentar. E como em qualquer tempo e lugar quem não se adapta não sobrevive, na próxima vez que Perrera deparou com o Elvis ele ia muito bem como pastor evangélico.

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