A água terá o valor ditado pelo detentor da outorga, com direito a estabelecer preços e formas de uso
O cenário de pandemia não poderia ser melhor para emplacar um discurso com a garantia de anular uma das maiores causas da disseminação da Covid-19, favorecendo as camadas mais vulneráveis da população, a falta de saneamento básico no País. E assim foi feito: desde o último dia 24, essa precariedade está com os dias contados, pelo menos segundo o relatório do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), base para a aprovação pelo Senado do projeto que estabelece o Marco Legal do Saneamento.
O discurso colou tanto que somente um reduzido número de parlamentares, economistas e outros especialistas, além de meia dúzia de gestores públicos, se deu conta que no bojo do projeto relatado pelo senador tucano está inserido o controle total da água. A maioria preferiu desconhecer que ao tornar obrigatória a privatização das empresas de saneamento, em estados e municípios, o projeto, à espera da sanção presidencial, entrega a outorga para exploração da água a grupos econômicos que a transformarão em mercadoria para obter lucro. O aspecto social foi para o espaço.
A água ganha status de commodity e terá o preço ditado pelo detentor da outorga, ou seja, o direito de estabelecer preços e formas de uso, seguindo normas da Agência Nacional de Águas (Ana). Modelo idêntico ao que há décadas contempla poderosos e lucrativos grupos econômicos acostumados a mamar nas tetas da União por meio de contratos de longo prazo, sem oferecer em troca a contrapartida esperada.
A privatização das rodovias pode servir de exemplo. Por meio de consórcios ou isoladamente, abusa em não cumprir normas contratuais e conta com a falta de transparência da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). No processo de concessão do trecho capixaba da rodovia BR-262, que liga o Espírito Santo a Minas Gerais, esse procedimento é apontado por prefeitos da região.
Na BR-101, no trecho que corta o Espírito Santo, o consórcio Eco 101 executou 13% da duplicação da rodovia do previsto no contrato de concessão, assinado há mais de seis anos. Há protestos de moradores das margens das rodovias, pronunciamentos em assembleias legislativas e câmaras de vereadores, investidas do Ministério Público, mas, de real mesmo, as obras andam a passos de tartaruga, em velocidade contrária aos acidentes de veículos, muitos com mortes. Com relação à água, a situação não é diferente.
O tema passa ao largo dos representantes dos estados no Congresso Nacional e também em casas legislativas estaduais. No Espírito Santo, tramitam na Assembleia 16 projetos de lei sobre o uso da água, todos voltados para a área ambiental e em defesa da agricultura de pequeno porte. A concessão e a transferência da outorga a grupos privados sequer são citadas.
A maioria dos parlamentos prefere aplaudir o discurso de que a qualidade do saneamento irá melhorar, com a garantia de novos investimentos. Parecem esquecer que na base dessa pirâmide estão presentes, invariavelmente, polpudos financiamentos de bancos públicos, na roda incessante da lucratividade, onde o social não tem vez, embora o discurso de seus construtores pareça o contrário.
Com uma crise hídrica tomando parte do planeta, ameaçando inclusive mananciais imprescindíveis à manutenção da vida, com o Rio Doce, no Espírito Santo e Minas Gerais, o marco do saneamento chega com um discurso longe de abordar esse tema. Investe na melhoria do saneamento, extremamente necessária, não há como negar, com a sagacidade de reservar o quinhão mais valioso, o elemento água, à exploração da iniciativa privada, minimizando ainda mais o Estado e deixando a população à mercê do lucro.