Prestes a ascender um novo pico na curva epidêmica da Covid-19, o Espírito Santo tem pela frente, mais de três meses, aproximadamente, de novas infecções, internações e mortes, numa trajetória em que outras dezenas de milhares de capixabas irão entrar em contato com o novo coronavírus (SARS-CoV-2), parte desse contingente sofrendo complicações com a evolução da doença e provavelmente indo a óbito um número próximo de mais dois mil.
Os percalços da subida da curva epidêmica são semelhantes aos da descida, em número de dias e de vítimas, explica a epidemiologista Ethel Maciel, alinhada com o matemático Etereldes Gonçalves, também professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), ambos membros do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), que assessora cientificamente o governo do Estado na condução da crise da Covid-19.
Nessa expectativa de similaridade entre os dois lados da curva, a variação dos números depende do comportamento da população e das medidas de governo. “Pode piorar, se continuar a flexibilização”, alerta Ethel.
Para melhorar, enfatiza, é preciso
“investir em atenção primária, testagem e isolamento dos infectados”, enumera. “Tudo isso pode evitar muitas mortes, eu acredito. Mas se ficarmos esperando as pessoas chegarem doentes e graves, alguns casos ficam difíceis de serem revertidos”, explica. “E, obviamente, quem vai sofrer mais são os mais vulneráveis. As mortes não são igualmente distribuídas”.
A palavra e a ação
O fato é conhecido dos gestores. “Leito de UTI [Unidade de Terapia Intensiva] não salva todas as vidas”, tem repetido o governador Renato Casagrande (PSB) em seus pronunciamentos. “Leito de UTI dá dignidade ao paciente e à sua família naqueles dias ou horas finais da vida, mas não é garantia de sobreviver ao vírus”, disse, mais de uma vez. “O que salva vidas é o distanciamento e o isolamento social, o uso de máscaras e higienização das mãos”, reforça, em uníssono com o secretário de Saúde, Nésio Fernandes, e suas equipes.
Na prática, porém, as ações de governo voltadas efetivamente a favorecer o isolamento da população se esgotaram no início de maio, quando, por pressão para a abertura do comércio para o Dia das Mães, e com mais de 40 dias de confinamento voluntário de quase metade da população – que conseguiu garantir sua subsistência financeira em home office e tem consciência social bem fundamentada –, os rumores de “quando vai abrir?” fizeram começar a despencar os índices de isolamento social.
Alma-Ata
Enfermeira e consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS), Ethel é uma incansável defensora da valorização da saúde primária, antes, durante e após a pandemia. “A atenção primária é a forma mais eficiente de organização do sistema de saúde”, aduz.
“Desde Alma-Ata já sabemos que sem investir em Atenção Primária à Saúde (APS) não melhoraremos a saúde da população”, rememora, remetendo-se à Declaração da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Alma-Ata, na República do Cazaquistão, em setembro de 1978, que estabelece os princípios mundiais do “compromisso com a saúde dos povos”. Mas a Declaração de Alma-Ata, foi feita em 1978, lamenta, “e ainda não aprendemos”.
A flexibilização só aumenta desde maio e, calcado no percentual de ocupação de leitos de UTI, o governo do Estado se escuda no bem-sucedido não-colapso do sistema de saúde – reconhecido por instituições nacionais e internacionais – para se negar, veementemente, em proteger os mais vulneráveis.
Possibilidades nesse sentido têm sido sugerida por pesquisadores, acadêmicos e membros da sociedade civil. Além de novos investimentos em atenção básica, entram na lista: reversão da excelente situação fiscal em benefício direto para a população, com disponibilização de renda mínima e empréstimos que de fato cheguem na ponta, aos microempreendedores e microempresários das periferias da Grande Vitória; apoio para o isolamento dos infectados nas comunidades mais carentes do Estado; entre outras,
muitas delas listadas na última semana pela Defensoria Pública Estadual.
Quantos lutos mais?
O número de mortos pela pandemia é proporcional ao número de pessoas expostas ao vírus. E como expostas, entende-se pessoas fora do isolamento e distanciamento social e as que não tenham a chamada imunidade cruzada, ou seja, a imunidade natural ao vírus, fazendo com que seu corpo não permita a entrada do patógeno (o que é diferente do infectado assintomático, que se contamina, produz anticorpos detectáveis nos testes, mas não desenvolve sintomas durante o período da infecção).
Considerando que o dia 0 da pandemia no Espírito Santo foi o dia cinco de março, quando foi confirmado o primeiro caso, e o pico de casos ativos foi o dia 24 de junho, passaram-se 111 dias até o ápice da crise. É esperado mais 111 dias até o índice de transmissão (Rt) chegar a 0. Se o tamanho da população exposta ao vírus se mantiver, o Estado sofrerá o luto de mais duas mil pessoas, em média. Se reduzir o isolamento, isso pode aumentar. Se o isolamento for ampliado, mais cadeias de transmissão poderão ser rompidas e vidas podem ser salvas.
“Não é hora de flexibilizar”, roga Ethel. O momento, conclama, ainda é de disciplina e empatia. Cada um, com sua postura consciente, pode salvar muitas vidas, e medidas de governo alinhadas com os princípios internacionais do cuidado, podem salvar ainda mais, postula a epidemiologista.