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Herzog, a Conquista do Inútil de Fitzcarraldo no limite

“Chegamos à conclusão de que as melhores histórias são as mais difíceis, desde que o resultado seja bem-sucedido”

Herzog continua sua aventura com as filmagens de Fitzcarraldo no coração da floresta, e segue a sua descrição de um trabalho na dureza das intempéries naturais e da própria natureza de dirigir um filme no caos e fora dos estúdios, ele nos diz: “Em Camisea eu vi muitos rostos novos. Inspecionei a trilha e mandei que parassem imediatamente, por enquanto, os trabalhos no poste central, o muerto, que deve suportar todo o peso do navio na encosta, para filmarmos os trabalhos amanhã logo cedo. Kinski viu a área e declarou que o que eu queria fazer era totalmente impossível, impensável, ditado pela demência.

Ele se transformou no epicentro do desestímulo. Analisando melhor, percebi claramente que ninguém mais está ao meu lado – ninguém, nenhuma pessoa, nem uma, nem uma única pessoa. Em meio a centenas de índios figurantes, dúzias de trabalhadores da floresta, barqueiros, funcionários da cozinha, equipe técnica e atores, a solidão se abateu sobre mim como um animal gigantesco e furioso. Mas eu via algo que os outros não viam”.

Herzog segue, e mais uma vez tem de lidar com os acessos de fúria de Kinski : “Filmei muito: Fitz com o fonógrafo, barcos com índios que escalam o navio. Em meio aos berros e ataques de raiva de K., que punham a perder todo o trabalho, fiquei mudo feito uma parede rochosa e o deixei quebrar suas ondas sobre mim. Afinal, estava bem aí a única coisa certa e produtiva para o que iria aparecer na tela, porque no fim a cólera que existe dentro dele é moldada. Só que no set ninguém compreende isso, ninguém da equipe, dos atores, apenas Huerequeque nesse ou naquele aspecto, mas ele nunca esteve na frente de uma câmera. Os índios, por sua vez, me dão a impressão de que estão tramando algo contra K.”.

Os esforços em relação ao navio também são descritos com detalhes por Herzog, fazendo com que este livro chamado Conquista do Inútil revele um trabalho aparentemente sem sentido, mas que hoje é um documento de um trabalho único na História do cinema. Ele estava entre os problemas práticos de uma filmagem caótica e sem previsão de dar certo, a inexperiência de alguns atores, como Huerequeque, e o estrelismo furioso de Klaus Kinski, que tornava aquilo tudo ainda mais tenso e caótico.

Herzog segue seu relato: “Trabalho nos molinetes na encosta, e então filmamos campas puxando a manivela da roldana com mais de quinhentos quilos montanha acima. Ela parece sólida o bastante, mas não estou muito seguro quanto ao cabo de aço. Os valores físicos não dizem muito mais do que vi quando o navio, com o casco rangendo e deformando-se ruidosamente, ameaçou quebrar, lavrando a terra com a quilha como se fosse um arado – foi quando filmamos uma primeira tentativa de puxá-lo para cima. Tomamos coragem, e minha única preocupação é K., já que ele, quando puxarmos o navio montanha acima, será apenas uma espécie de figurante…E em sua mendacidade humana e falta de dimensionamento, para voltar a ser o centro das atenções ele se valerá da única possibilidade a seu alcance, a saber, ficar doente. Isso eu aposto comigo mesmo”.

As confusões seguem, e Herzog as descreve: “Laplace vai mesmo embora, e de fato me deu a entender, por cautelosas insinuações, que está indo por incompatibilidade com W.; além disso, acrescentou, ele não tinha certeza de que realmente conseguiria cumprir sua tarefa. Segundo ele, o navio seria um verdadeiro monstruo, um monstro com o qual ele não deveria ter se envolvido. De minha parte, tomei duas decisões: eu mandaria substituir o poste de arrimo, independente de quanto tempo demorasse, por uma construção à prova de idiotas, e, com isso, tomava completamente em minhas mãos a tarefa de puxar o navio montanha acima.

Os fatores físicos são conhecidos e de fácil compreensão: peso do navio, inclinação da encosta, transferência das forças no sistema de roldanas, perda por atrito. As imponderabilidades restantes precisavam excluir a possibilidade de o ponto de apoio não aguentar, bem como a de haver pessoas dentro ou atrás do navio quando ele for puxado pela encosta. Aos brados, K. veio dizer que eu era um demente, que era um crime o que eu pretendia. Eu apenas lhe disse que, se o navio se soltasse, ninguém estaria em perigo – eu apenas destruiria um navio em um belo e cataclísmico evento. Mas esse não era o objetivo, e eu estava aqui por outra visão, com a qual eu estava comprometido”.

A vida não estava fácil para ninguém naquelas filmagens, e Kinski era um agente do caos em meio a todas as dificuldades que já seriam naturais num cenário como aquele, e Herzog resistindo bravamente com sua ideia fixa e leitmotiv que resumia todo o sentido de seu filme, o tal navio na montanha, e ele segue seu relato: “Paralisia. Laplace se foi. Gloria se foi. K. passou dos limites com seus ataques de cólera contra ela. Pela manhã, filmamos com muitos índios no tombadilho, captados a partir da ponte, e bastou movermos o navio um pouco de um lado a outro para que surgisse, em uma estreita faixa da imagem, a impressão de que o cenário de fundo estava se movendo e que o navio estava andando. Depois rodamos uma cena que escrevi rapidinho para a compreensão do comportamento dos índios.

Ao meio-dia, Gloria estava no rádio, por causa de algumas encomendas de Iquitos, e eu na minha cabana; o que logo se deu foi uma gritaria dos infernos. K., que não suporta a voz dela, estava feito um demônio e lhe mandou ficar quieta; ela retrucou, com razão, mas berrando com uma voz de feirante, e perguntou se ele achava então que amanhã teria uma única folha de alface em seu prato. Em reação, ele destruiu todo o parapeito do mezanino do refeitório, quase caindo da plataforma. Miguel Vázquez riu ao ver a cena e K. ficou ainda mais fora de si, o que Glória, por sua vez, interpretou erroneamente como um ataque violento contra ela. K., que a essa altura só tinha olhos para danos materiais, veio disparado até mim, berrando, querendo estraçalhar mais alguma outra coisa e transformá-la em lenha.

Nesse meio-tempo, Glória chamou W. pelo walkie-talkie, para que a ajudasse; ele chegou vindo da trilha, pegou a espingarda de Huerequeque, mas desistiu de matar o nervosinho a tiros, pois o viu reclamando na minha cabana. Pedi a W. que me deixasse um momento em paz, que eu assumiria o controle da situação, mas ele aproveitou o momento para jogar mulher, filha e algumas coisas na lancha. Ele já tinha ido, gritou-me quando eu quis conversar com ele. E foi embora. Ficamos tomados de desilusão, pois com todos os atritos com W., estava claro o quanto ele era importante para tudo aqui, e as pessoas me pressionaram a ir atrás dele; para espanto de todos, porém, eu primeiro me deitei na rede por uma hora, pois sabia que, conhecendo-o, devia deixá-lo por um tempo sozinho.”

Herzog aqui está passando pelos momentos mais difíceis de suas filmagens, e como todo sonho ou objetivo passa por dificuldades e provações, chegamos à conclusão de que as melhores histórias são as mais difíceis, desde que o resultado seja bem-sucedido no meio e no fim da travessia, alcançar a meta era a ideia fixa e a obsessão de Werner Herzog, e ler este livro, Conquista do Inútil, é testemunhar o resultado como pronto, já sabemos de antemão que um filme existe e que foi bem-sucedido, mas, ao lermos o livro, vemos os momentos de tensão e caos nos quais ainda, para aqueles que estavam lá, não se sabia no que aquilo tudo daria.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com


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