Ação do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte envolve toda o grupo familiar
O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) completou 15 anos e divulgou dados sobre sua atuação no Espírito Santo. Ao todo, foram 968 vidas salvas. Desse total, 345 são crianças, adolescentes e jovens; e 623 são seus familiares. “O lugar prioritário dessas pessoas é a família. Por isso, atendemos todo o grupo familiar, que mora na mesma casa”, afirma o coordenador do programa, Márcio Bertaso.
Programa tem como foco crianças, adolescentes e jovens ameaçados de morte. Crédito: EBC
O Programa de Proteção foi criado em 2003 pelo governo federal. No Espírito Santo, é executado pelo Centro de Apoio aos Direitos Humanos Valdício Barbosa dos Santos, por meio de um termo de colaboração com os governos estadual e federal. Funciona em 14 estados, sendo que o Espírito Santo foi um dos primeiros onde começou a atuar, segundo Márcio, pelos altos índices de violência contra crianças, adolescentes e jovens até 18 anos, que são o principal público-alvo. Mas também atende egressos de medida socioeducativa até 21 anos, quando são desligados do Programa.
Márcio informa que quando há casos de violência nos quais a atuação pode se fazer necessária, o Programa é acionado por órgãos como o Ministério Público (MP), Conselho Tutelar, Vara da Infância e Juventude e Defensoria Pública, que são os principais a serem procurados em casos de violência. Entretanto, essas não são as únicas portas de entrada. “Se há situação de risco, de ameaça, qualquer serviço público pode fazer contato com o PPCAAM. Às vezes, o equipamento público mais próximo é a escola, onde a criança pode relatar alguma situação de violência contra ela ou seus irmãos para os professores, e também o agente comunitário de saúde, por exemplo”, explica.
O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, afirma Márcio, analisa o caso e, dependendo da situação, insere a família. As situações de violência são inúmeras. “Atendemos casos nos quais crianças, adolescentes e jovens foram testemunhas de algum crime; estão sendo exploradas em redes de exploração sexual; sofrem abuso e são ameaçadas pelo abusador para que não contem; e estão envolvidas com o tráfico de drogas, seja como trabalhadores do tráfico ou como devedores. No caso principalmente das meninas, podem estar sendo ameaçadas por manter relações afetivas com traficantes. Há, ainda, o caso de pessoas não envolvidas com o tráfico, mas que moram na rua X, que é inimiga da rua Y, e acaba sendo alvo da violência”, diz.
A atuação, explica Márcio, é de tirar a criança, adolescente ou jovem do território de risco junto com sua família. Nesse processo, o Programa auxilia as pessoas também na garantia de reestruturação no novo local de moradia, onde será preciso arranjar um novo trabalho e ter acesso a serviços públicos, como escola. Durante um período, relata Márcio, a família recebe um suporte financeiro “até alcançar por meios próprios a sobrevivência econômica”. De acordo com o coordenador do PPCAAM, 70% das famílias, quando desligadas do Programa, permanecem no lugar onde foram reinseridas.
Proteção em números
Segundo dados do Programa de Proteção, as 343 crianças, adolescentes e jovens protegidos são de todas as faixas etárias: 0 e nove anos (3,5%), 10 (0,58%), 11 (1,74%), 12 (4%), 13 (9,3%), 14 (10,7%), 15 (16,9%), 16 (16,6%), 17 (20,9%), 18 (9,3%), 19 (4,6%) e 20 (1,4%). Desse total, 185 são pardos, 105 negros, 49 são brancos e três são indígenas. Segundo Lula Rocha, coordenador do Círculo Palmarino, o Movimento Negro e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classificam pretos e pardos como negros. Portanto, dos 343 protegidos, 290 são negros, o que equivale a cerca de 84%.
Lula Rocha diz que racismo estrutural faz negros serem maioria entre os atendidos. Crédito: Facebook
“O racismo estrutural faz com que os negros estejam no risco iminente de morte. Que bom que existem esses mecanismos para minimizar esse número de óbitos, mas também é preciso haver políticas públicas de combate à desigualdade, de garantia de direitos para que os negros não tenham necessidade de acessar esse mecanismo”, defende Lula.
Os dados mostram que a região com mais ameaças registradas foi a metropolitana, que corresponde a 146 casos, excetuando o município de Vitória. A Capital era um local de ameaça para 60 das crianças e adolescentes protegidos pelo PPCAAM. No interior, o índice foi de 86 casos. Outros estados, 43. Nesse último, Márcio explica que se tratam de pessoas que mudaram de outros estados, onde estavam ameaçadas, e foram acolhidas pelo Programa no Espírito Santo.
Os números mostram que a maioria das crianças e adolescentes atingidos integra famílias que vivem com até um salário mínimo. Nesse grupo, 14% não têm renda, 11% têm renda familiar de até um quarto do salário mínimo, 6% sobrevivem com renda entre um quarto e meio salário mínimo, e 20% entre meio e um salário. As famílias que contam com um valor mensal entre um e dois salários correspondem a 39% dos atendidos. As que vivem com uma renda entre dois e três salários são 5%, e entre três e cinco, 4%.
Quanto ao gênero, 78% são masculino, 22% feminino. Não há registro de transexuais e travestis, embora o Programa faça esse recorte. A presidente do Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (Gold), Deborah Sabará, acha a medida importante. “É um olhar diferenciado, sinal que está preparado para acolher esse grupo quando alguém que pertence a ele aparecer”, diz. Entretanto, Deborah afirma que o fato de não haver registro de transexuais e travestis mostra que essas pessoas não estão tendo acesso ao equipamento. “Travestis e transexuais não são acolhidos pela família, saem muito cedo de casa, se prostituem para poder sobreviver, e normalmente as pessoas, quando veem que eles estão em perigo, não ajudam. Acham que merece o sofrimento”, relata.
Deborah acha importante inserir travestis e transexuais no recorte de gênero. Crédito: Lissa de Paula/Ales
Nova vida em novo território
“O sucesso do trabalho está no processo de inserção no novo território, na capacidade de autonomia suficiente para gerir a própria vida”, ressalta Márcio sobre o Programa de Proteção. Uma das principais características é o sigilo absoluto. Portanto, não se é permitido identificar o nome de alguns trabalhadores que atuam no PPCAAM, bem como das pessoas assistidas por ele e os casos de violência pelo qual passaram, já que é preciso evitar que a insegurança volte a assombrar pessoas que querem começar uma nova vida, na qual possam ter o direito de ir e vir e de saber que seus entes queridos não correm risco de morte.
De acordo com uma pessoa atendida pelo Programa, que teve que sair de seu território há mais de um ano e alcançou a autonomia a qual Márcio se refere, uma das maiores dificuldades foi o rompimento dos laços familiares. “Foi difícil ficar longe da família, ir para um lugar diferente, que eu desconhecia. Foi estranho, parecia que eu estava indo embora do país”, recorda. No entanto, valeu a pena. “Me sinto segura, com a vida preservada”, afirma.
O rompimento com os familiares não foi definitivo, pois agora a pessoa mantém contato com eles por telefone, porém, com um aparelho que não deixa rastros, como o local de onde vem a ligação e o número. Márcio relata que, dependendo da situação, a comunicação pode ser liberada aos poucos.
Quanto ao desligamento em relação ao PPCAAM, ele explica que isso é feito após análise das condições de autonomia no novo território, da situação de risco, e de traçar estratégias para que o risco original não encontre a família novamente. O novo território onde a pessoa será inserida normalmente é dentro do Estado. Fora dele, segundo Márcio, normalmente é em casos em que as ameaças partem, por exemplo, de pessoas ligadas ao poder público.
Projeto Família Solidária
A nova vida em um novo território pode vir acompanhada da necessidade de ajudar quem passa por uma situação de risco semelhante. Há mais de 10 anos afastada do local onde sempre viveu, uma pessoa atendida pelo Programa faz parte, hoje, do Projeto Família Solidária, criado pela Organização Não Governamental (Ong) pernambucana Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop).
Por meio do Família Solidária, os interessados em acolher uma família ou uma criança, adolescente ou jovem em casa enquanto eles não alcançam autonomia no novo território, podem se cadastrar. “É uma forma de ajudar a pessoa na socialização, na adaptação, uma forma de dar apoio”, diz a pessoa, que acredita que se tivesse tido esse tipo de acolhimento, sua adaptação no novo território poderia ter sido mais fácil, embora destaque que o PPCAAM teve a preocupação de colocá-la em um lugar que tem seu “estilo”.
Márcio informa que o Família Solidária tem 10 anos, mas existe no Espírito Santo há dois. O Gajop, explica, apresenta a iniciativa para, por exemplo, movimentos de direitos humanos, Centros de Referência em Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), que auxiliam na indicação de pessoas que possam fazer o acolhimento. Aqueles que se voluntariam passam por formações contínuas na área de direitos humanos e têm apoio psicossocial para não comprometer a sua segurança e a dos acolhidos, além de saber lidar com o contato com realidades, muitas vezes, perversas.
Márcio aponta que, algumas vezes, a criança, adolescente ou jovem é acolhida primeiro no projeto, enquanto sua família ainda não tem condições de mudar para o novo território.
Antecedentes
Antes do PPCAAM, foi criado o Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente Jean Alves da Cunha, cujo nome é uma homenagem ao menino de rua assassinado por policiais em 1992, na semana em que iria participar III Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em Brasília, onde iria denunciar o assassinato de meninos de rua em Vitória. “Havia, principalmente na Vila Rubim, um grupo de policiais que faziam limpeza social e muitos eram envolvidos com o tráfico. Quinze PMs foram apontados como responsáveis pela morte de Jean. Dois foram mortos, acredito que por queima de arquivo. Os demais foram inocentados”, recorda o militante dos Direitos Humanos Isaías Santana.
Jean Alves da Cuha. Créditos: Kika Carvalho/Gold
Esse contexto, relata Isaías, foi de criação de vários equipamentos de proteção, como o Centro de Atendimento à Vítima de Violência (Ceavi), que segundo Isaías não tinha um recorte, atendendo a população em geral; o Sistema de Proteção à Testemunha (Provita); e o Sistema de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. De todos eles, apenas o Provita existe até hoje.