Filme do capixaba Anderson Bardot retrata de forma poética questões como história, racismo e sexualidade
“Eu quero que o mundo veja esse filme!” foi a forma de Anderson Bardot responder afirmativamente quando perguntei se toparia uma matéria sobre a participação de seu curta-metragem Inabitáveis na Mostra Competitiva do Festival Kinoforum 2020, que está acontecendo de forma virtual. “Em vez de seguir o rito piramidal, nós pulamos diretamente para internet”, comenta o diretor sobre o processo de circulação de filmes que costuma iniciar com uma temporada de exibições em festivais, para depois fazer uma première na cidade onde foi filmado, exibições em cineclubes, TV, e só então chegar à internet. Exibido no dia 22 de agosto, a obra volta em cartaz na quinta-feira (27), às 19h, ficando disponível para ser assistido por 24h pelo site do festival Kinoforum.
Com a pandemia do coronavírus, as estratégias de exibição mudaram para qualquer filme que fazia esse percurso em 2020. Inabitáveis começou o ano em grande estilo, fazendo sua estreia praticamente simultânea no Festival Internacional de Filmes de Rotterdam, na Holanda, e na Mostra de Cinema de Tiradentes, importante janela do cinema brasileiro. Desde março, os festivais de cinema que mantiveram edição este ano passaram a acontecer online. “Essa situação nos forçou a nos abrirmos mais. O que está gerando uma maior democratização do consumo deste tipo de conteúdo. Porém, por outro lado, perdemos o calor humano, as salas de cinema, a experiência inigualável de uma sala de cinema em estreia”, avalia.
O fato é que o filme agora poderá chegar mais rapidamente ao público, especialmente o do Espírito Santo, onde foi filmado e está o principal público a que quer chegar: os capixabas. Anderson conta que com Inabitáveis, que foi tema de seu trabalho de graduação em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Estado (Ufes), buscava “dar um presente para Gil Mendes, para a comunidade LGBTQI+ e para os meus conterrâneos – tudo ao mesmo tempo”.
Gil Mendes é um bailarino e coreógrafo de referência no Estado. É dele a coreografia de Inabitáveis, o espetáculo de dança que inspirou o filme de mesmo nome. Anderson Bardot trabalhou como assistente de produção do espetáculo em 2013 e de lá pra cá maturou a ideia de usar elementos daquela obra que tratava do encontro de dois homens em busca de sexo casual numa metrópole conservadora para criar uma nova produção, agora no audiovisual.
Os dois corpos negros, interpretados no filme pelos próprios dançarinos do espetáculo de dança, saem dos palcos e ganham como plano de fundo a cidade de Vitória, desde o Palácio Anchieta, centro do poder, até o Morro de São Benedito, comunidade periférica, escancarando sua lasciva movimentação corporal para os espaços onde transita a população dessa sociedade capixaba ainda racista, homofóbica e conservadora.
A ficção dialoga com a realidade, já que o espetáculo de dança real está dentro da trama do filme. Foi como assistente de produção de Inabitáveis que o então estudante de cinema Anderson começou os ensaios de movimentos de câmera junto aos corpos, que agora se consolidam na obra cinematográfica.
A presença LGBTQI+ se dá não só na temática, mas também em boa parte do elenco e equipe do filme, e Anderson segue sua aposta de trabalhos anteriores na estética queer. Para isso, conta nas atuações do experiente ator Markus Konká e da estreante Castiel Vitorino, uma jovem artista visual que vem construindo importantes contribuições e questionamentos sobre raça, gênero e sexualidade a partir da interface entre arte, psicologia e espiritualidade.
Na obra, seus personagens, um coreógrafo que também é guia de turismo e um estudante “afeminado” se encontram nas ruínas de Queimado, na Serra, local da mais importante rebelião de negros contra a escravidão no Espírito Santo. O passado escravagista em paralelo ainda possível com os dias atuais. “Inabitáveis quer refletir sobre o que é o tempo e o que nós somos”, indica o diretor. “Essa cidade precisa refletir para onde se está caminhando e se esse caminho é inclusivo ou excludente”.
Quando lhe questiono sobre quais as questões importantes que considera que o filme traz para sociedade capixaba, Anderson Bardot aponta perguntas e não respostas: “Como habitar e celebrar os nossos corpos em um mundo em ruínas? Somos arquivos históricos ambulantes? Somos responsáveis pelo o que carregamos em nosso DNA e também em nossa cultura? O que é ser um cidadão no século XXI? Somos soluções e conflito de tempos e espaços? O que pode um corpo negro nesta cidade colonialista chamada Vitória? Vitória de quem? Sobre quem? O que faz da e do artista a antena que capta, decodifica, diagnostica e pauta as expressões sociais urgentes e universais? A cidade de Vitória é um recorte da colonização europeia e estadunidense na América Latina?”
A fotografia é um dos pontos fortes de Inabitáveis, com imagens preciosas que terão ainda mais valor para um capixaba, que poderá se identificar com parte do território pelo qual o filme transita numa narrativa não-linear e com momentos de pura arte e encantamento. Para os amantes do cinema, a obra apresenta nas entrelinhas uma série de referências a outras obras e alguns testes que o diretor coloca para os espectadores.
Antes que pudesse ser exibido em sessão de cinema neste mesmo território capixaba onde foi filmado, Inabitáveis nos chega pela internet. “Quando eu recebi a confirmação de estar no Kinoforum 2020 por meio digital, eu já estava firme de que esse filme deveria ser visto pelo maior número de pessoas possível. E o Kinoforum está me dando o que eu almejei. Quanto carinho! Recebi uma avalanche de mensagens nestes últimos dias, depois do lançamento. Novas portas e janelas estão se abrindo”, suspira Bardot.
Do palco às telas, Inabitáveis mostra a paixão entre dois homens negros
Inabitáveis faz apresentação única no Teatro Carlos Gomes
https://www.seculodiario.com.br/cultura/inabitaveis-faz-apresentacao-unica-no-teatro-carlos-gomes
Devorando o colonialismo
https://www.seculodiario.com.br/cultura/devorando-o-colonialismo