Quais as possibilidades de um retorno das aulas presenciais e o que pode ser esperado com relação a um possível retorno? Qual o momento ideal em relação ao nível de circulação do vírus pra determinar esse retorno?
Perguntas como essa, que andam ocupando as mentes e os corações dos capixabas, seja dos estudantes, de seus familiares, dos professores, profissionais da educação e gestores de diversas instâncias, também são feitas pelo médico, epidemiologista e pesquisador em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), André Périssé, que participou de live realizada pelo Laboratório de Gestão da Educação Básica da Universidade Federal do Espírito Santo (Lagebes/Ufes) na última semana, com mediação da doutora em Educação Gilda Cardoso, coordenadora do Lagebes.
Perguntas que, afirma Périssé, não têm resposta ainda. “Não há resposta para isso. A única coisa que a gente sabe é que as aberturas que foram feitas no Brasil, de atividades produtivas e religiosas, no pico da epidemia, não deveriam ter sido feitas e prejudicaram de alguma forma o retorno das atividades de educação”, argumentou.
Com esse lastro de erros coletivos cometidos pelos governos federal, estaduais e municipais, é preciso que agora as discussões sobre retorno das aulas sejam feitas de forma mais honesta e abarcando toda a complexidade que a questão possui.
Em sua apresentação, André Périssé voltou-se para a outra extremidade etária, apontando possivelmente o ensino infantil como o mais indicado para iniciar o retorno escalonado. As “vantagens” dessa decisão envolvem o fato de que as crianças menores são menos sintomáticas e menos transmissíveis do vírus, apesar da alta carga viral, segundo estudo recente da Universidade de Harvard. “Um sintoma é uma característica de efetividade de transmissão. Se tosse, espirra, transmite mais. Há casos de síndromes graves em crianças, mas elas têm adoecido menos”, comentou.
Outra vantagem epidemiológica seria o fato de as turmas de ensino infantil terem apenas um professor, o que facilita o estabelecimento de espécies das chamadas “coortes”, em que “um grupo de pessoas seguem juntas ao longo do tempo”. O ideal seria um professor para cada dez alunos, por exemplo, o que pode indicar a necessidade de contratar mais profissionais.
“Quando há um caso em um ‘coorte’, tem como rastrear os casos dentro do grupo. Se permito que vários grupos interagem entre eles, eu perco a capacidade de identificar, tenho que ampliar o rastreamento. Imagina fazer o rastreio na escola inteira?”, expôs.
O professor com várias turmas tem maior capacidade de se infectar e de transmitir também, lembra Périssé. “Na educação infantil isso é possível, o professor de classe. No ensino médio não é possível”, compara.
Entre o ideal e o possível
O ensino infantil também tem a característica de maior dificuldade – ou quase impossibilidade – de adesão ao ensino remoto. Mas, por sua vez, têm no contato com o colega e o professor uma parte essencial do processo de aprendizagem. Além disso, possui sabidamente mais dificuldade também de usar máscaras e adotar os protocolos de higiene. Ou seja, se a matemática da biossegurança não fecha com os estudantes mais velhos, também não fecha com os mais novos.
“Na Fiocruz havia essa discussão da educação com a saúde, a gente tem escolas internas, creche. A saúde diz o que é importante e a educação diz o que é viável”, argumentou.
Comitês locais
A medição da temperatura é outra polêmica. Verificado que, segundo os inquéritos sorológicos feitos no Espírito Santo, apenas 26% das pessoas contaminadas na faixa etária entre 2 e 22 anos apresentaram febre, o termômetro não se mostra um instrumento de alta segurança. Por outro lado, pontua André, a medição da temperatura pode ser útil nos casos das crianças que, mesmo com febre, são enviadas para a escola.
Nesse sentido, ganha relevo a importância dos comitês locais, previstos na portaria da Sesa e Sedu que estabelece os protocolos de biossegurança a serem seguidos para a reabertura das escolas desde o ensino infantil ao superior.
“A escola tem que interagir muito com os pais, a comunidade do entorno, os servidores da educação. É preciso fortalecer o entendimento coletivo de que é melhor faltar a escola por 14 dias do que ir com febre e correr o risco de disseminar”.
Os comitês têm, entre suas funções, o papel de identificar os casos suspeitos, enviar essas crianças para casa e acionar a vigilância em saúde municipal para fazer as investigações.
Mas uma coisa que não está clara em nenhum protocolo, enfatizou o epidemiologista: quando houver um surto, um caso comprovado, o que fazer? Fechar somente o “coorte” ? Fechar todo o turno? Fechar toda a escola? Toda as escolas do bairro ou da cidade?
Outro ponto inconteste, salientou o pesquisador da Fiocruz, é a necessidade de investimento. “Em educação, em pessoal, em tecnologia, em higiene”, citando um estudo que aponta que metade das merendeiras das escolas públicas está em grupo de risco, quadro semelhante a outros servidores, como os vigias de portaria de escolas. “É preciso investir e as pessoas estão falando em corte de orçamento para a educação e saúde!”, exasperou.
“A discussão vai muito além do que permitir ou não o retorno. Não podemos contar com a vacina. Se ela existir, vai demorar para ser popularizada. Tem que rediscutir muito, debater bastante”, defendeu, abordando os impactos do não-retorno, cujo debate é mundial, feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e outros organismos internacionais.
Não-retorno
Já são conhecidos os problemas de saúde mental dos estudantes de todas as faixas etárias, a fragilização da segurança alimentar em todas as classes socioeconômicas – os mais abastados consumindo mais fast food e os mais pobres com menos refeições diárias – o atraso e o abandono escolar, o aumento da violência doméstica.
“Essas coisas estão acontecendo, não dá pra continuar com as crianças em casa por mais seis meses sem pensar e encontrar alternativas. A discussão não é da saúde, da educação, é de todos, da Fazenda, da Justiça, do Conselho Tutelar. O que não pode é não discutir”, conclamou.
A doutora em Epidemiologia e professora da Ufes Ethel Maciel lembra que os perigos advindos do retorno às aulas do ensino superior e do ensino médio já estão sendo expostos desde o início das discussões sobre o assunto no Estado. E que os riscos para os anos mais iniciais da escolarização também precisam se expostos.
Intersetorialidade
Os impactos do não-retorno são reais, mas não serão resolvidos com o retorno das aulas. “São questões intersetoriais, que não são problema da escola. Foram colocados na escola durante muito tempo, mas são de ordem muito maior”, afirma.
“Abandono escolar e atraso são realmente importantes, mas dois ou três meses de aula presencial serão a solução pra esse problema que também está além da pandemia?”, questiona.
Ethel afirma que concorda com a necessidade de discutir com honestidade as reais possibilidades de solução desses graves problemas e que esse debate pode ajudar a garantir mais qualidade para a gestão das escolas.
“Pela primeira vez a gente está assumindo que a escola tem sido o lugar onde esses problemas são tratados, apesar da escola não ser responsável por sua resolução. É hora de enfrentar esses problemas, colocando cada um na sua responsabilidade. Segurança alimentar com a assistência social, violência doméstica… envolve questões culturais que precisam de reformas profundas na sociedade. Colocar tudo na escola é muito fácil, difícil é resolver algo que não é responsabilidade efetivamente da escola, mas do Estado brasileiro”, pondera.