Em Câmera Lenta, de 2017, Marília Garcia faz um percurso que busca testar os limites da poesia
Marília Garcia, desde a sua estreia literária, apresentou uma poesia móvel ligada à ideia de meios de transporte que apareciam em seus poemas. Há destaque para aviões, voos e aeroportos. Deslocamentos e viagens são constantes leitmotivs nesta poesia sobre o movimento, num tipo de avanço para além de limites locais, com grandes deslocamentos, movimentos rápidos e este caráter cosmopolita conferido pelo tema da viagem.
As memórias em movimento de personagens nos poemas também fazem a poesia de Marília. Neste caráter cosmopolita, os poemas aparecem diversificados e os cenários de nacionalidades em relação a estes personagens se diversifica. A amplitude do mundo em Marília está ligada ao tema da viagem e dos meios de transporte para que esta babel seja possível.
A memória se acomoda numa síntese que transforma o espaço. O poema de Marília ganha este caráter em seu livro Teste de Resistores, de 2014. O percurso se torna nota de um processo em que o espaço acaba passando por uma abstração neste desenho feito pela memória.
A percepção do espaço, do entorno, na poesia de Marília, passa por um tipo de visão livre de automatismos. Tem-se um desenho geográfico que faz a definição da dicção poética e a mistura da voz poética com a experiência deste espaço de locomoção descreve lugares e revela a descoberta deste eu poético na aventura sobre locais e que se expande com esta fala, com a dicção do poeta que enuncia a sua experiência e sua descoberta.
Em Câmera Lenta, de 2017, Marília Garcia faz um percurso que busca testar os limites da poesia, uma dicção bem lúdica, em esquemas que inovam na poesia de uma forma bem cadenciada. Ler Câmera Lenta é entrar em contato com um objeto curioso. Esta experiência nova de Marília Garcia coloca o eu lírico num embate em que seu estatuto acaba sendo confrontado.
O questionamento do eu lírico passa por ter sido purificado no simbolismo francês, perdendo seu caráter biográfico e virando uma evanescência. Um eu lírico que deixa a vida ligada à vivência e se fixa no texto poético em função deste verso mais puro, que avança pelo século XX e tenta religar este a uma vida vivida, em que literatura e vida retornam ao diálogo. Marília Garcia, por sua vez, neste contexto da poesia brasileira, herda de Ana Cristina César seus desdobramentos de poesia em cartas, e o eu lírico aqui se renova.
LIVRO: CÂMERA LENTA
POEMAS
HOLA, SPLEEN : E o tema baudelairiano do spleen reaparece aqui como um tipo de apresentação do poema que se liga ao tempo e um jeito diferente de dar boas-vindas, no que temos : “um dia/ela me disse/”hola, spleen”/e eu demorei mas depois/percebi que era uma/frase sobre/o tempo.” (…) “talvez/um jeito de dar/as boas-vindas,”. Marília quer ler seu poema em voz alta, e a questão do tempo entrará neste poema como o tema que lhe dominará, ou melhor, este registro e sua estranheza essencial que logo o poema irá arrematar, temos aqui : “um dia quis ler em voz alta/um poema chamado/”hola, spleen”,/mas quando chegou a hora/fiquei muito muito gripada,” (…) “se tivesse gravado/o poema antes,/podia ligar a voz/e tocar em vez de ler,” (…) “então, combinei/que faria a leitura outro dia/e ainda faltava um mês/para chegar a leitura que vou chamar/aqui de caixa-preta”. A voz gravada de Marília vem do passado, a estranheza se instala no poema e todo o seu questionamento aflora, no que temos : “assim,/esta voz que fala aqui/é a voz de uma marília de um mês atrás/é a minha voz falando a partir do passado,” (…) “há um mês eu não tinha/como prever nada/e fiquei me/perguntando :/- como fazer para essas palavras escritas/há um mês dizerem algo/sobre estar aqui/agora?/e eu não soube responder.”. O voo nos vem, as máquinas voadoras tomam esta noção de tempo no poema, no que temos : “talvez não desse para ouvir as máquinas voadoras/neste dia,/foi o que pensei,/mas eu me enganei/porque hoje/desde cedo/os helicópteros estão voando.” (…) “imaginem que isso aqui é um quadrado/com drones volantes,/ou uma cena congelada/com o céu cheio de zepelins,/mas o som é um só:/barulho de máquinas/voadoras/pelo céu.”. Marília caça uma mensagem no céu, seu fascínio com as máquinas voadoras brilha no poema, e termina : “se a gente prestar atenção e fizer silêncio/- se a gente prestar atenção e fizer/silêncio –/pode ser que ouça/alguma mensagem/perdida no ar.”.
PELOS GRANDES BULEVARES : O poema especula o que uma mulher (provavelmente, no poema não se especifica) está vendo ao fechar os olhos, o poema nos aparece aqui com um caráter bem especulativo, no que temos : “o que ela vê quando fecha/os olhos? linhas sinuosas, um mapa/feito à mão, parece uma pista vista de cima –/os campos cortados ou poderia ser/uma sombra riscando o verde quando passa/lá no alto.”. O mapa se abre, e se fala em cinema, o tempo, a verdade, vidro, um animal marinho, a especulação aqui é desvairada, no que temos : “não é nada abissal/estar na superfície,/você quis dizer de vidro? esférico?/ou um animal marinho em miniatura :/um polvo de 1 mm?/o cinema é 24 vezes/a verdade por segundo. este segundo/poderia ser 24 vezes a cara dela/quando fecha os olhos e vê.”. A busca da palavra exata, Marília ainda tenta entender, e segue : “não é por falta de repetição, mas não/encontrava a palavra exata./o que ela vê não sabe e tudo fica tremido/se fast forward./agora fecha os olhos para/entender, para ir mais/devagar.”. A especulação sobre a pressão da profundidade do mar, uma montanha ao contrário, poema curioso : “o que ela vê ao abrir a/claraboia? ao bater aquela foto da/ponte ou quando lê/a legenda :/”nos abismos a vida é submetida/ao frio, escuridão, pressão./oito mil metros de profundidade”/uma montanha/ao contrário.”.
ESTEREOFONIA : O poema fala sobre ângulo, aonde está voltada a vista, e se dá com um guarda-chuva e todas as suas possibilidades, no que temos : “nunca falei tão sério, disse e olhei/pra cima : seu rosto no meio das gotas,/o guarda-chuva preto como uma moldura redonda/e você parado, cantando, virado para o vidro/do carro, sem ouvir mais nada/só a voz/cantando no meio da chuva/e o eco no vidro do carro.”. A poeta olha para cima, no que temos : “e eu olhei pra cima :/nunca falei tão sério,/disse e, no meio da chuva,/a cena se repete.” (…) “eu olhei pra cima e você ia embora/pelas escadas. no último degrau/não se vira mais.”. O poema então tenta desenhar a si mesmo, o que ele está dizendo, no que temos : “- esse poema contém doze passos,/ele diz,/e eu saio contando a distância/enquanto caminho dizendo o poema de cor,/mas daquele dia só me lembro/da cor de chumbo e a voz/em eco no vidro do carro.”. Volta o guarda-chuva, e o poema termina numa especulação pelo som : “olho para cima outra vez/e vejo sempre o mesmo/guarda-chuva preto, moldura para/descongelar cada um dos degraus,/para descongelar a ordem/do verso seguinte :/panorâmica, golpe e caixa-preta.” (…) “- você vai sempre pelo som?/- que som?”.
NOITE AMERICANA : O poema retrata a câmera lenta, título do livro de poemas de Marília Garcia, e aqui, neste poema da noite americana, teremos três noites, no que vem : “no momento de maior intimidade,/ficaram a 1 cm de distância/um do outro.” (…) “então me afasto e/vejo a cena em câmera/lenta : ali os dois não/se olham.”. Vem uma pergunta insólita, e colocações que rompem os limites do tempo, o movimento aqui ganha em complexidade, e domina a cena do poema, no que temos : “- por quanto tempo você aguentaria ficar debaixo/d`água?/é o que ela parece dizer./em vez disso, olha o mínimo relógio de pulso/e sabe que seis horas depois já estará/do outro lado.” (…) “um trem parte para um ano/específico no futuro. dizem que lá as coisas/não mudam./está escuro/e eles atravessam o tempo.” (…) “quando a viagem chega ao fim,/ele decide voltar atrás :/- quando me perguntam/por que voltei,/ diz ele,/nunca dou a mesma resposta.”. Na noite 3, por fim, todo o planeta é visto, tudo é visto do alto, de cima, a luz celeste de uma abóbada limpa, brilhando luz pretérita de um universo já acontecido, o mundo girando com lembranças em pause, coda do poema : “noite 3/a câmera agora/mostra a terra do alto./de cima,/o planeta azul e úmido/tem uma única mancha cor/de ferrugem/que fica perto do pacífico./neste ponto de umidade zero/o ar é tão fino/e tão limpo,/tão frio/e tão seco/que se pode ver com nitidez/a luz dos objetos celestes/vinda do passado.” (…) “em geral, ela se mostra à noite/como as lembranças/em pause.”.
POEMAS
HOLA, SPLEEN
um dia
ela me disse
“hola, spleen”
e eu demorei mas depois
percebi que era uma
frase sobre
o tempo.
talvez
um jeito de dar
as boas-vindas,
mas a gente nunca sabe
o que vem depois.
um dia quis ler em voz alta
um poema chamado
“hola, spleen”,
mas quando chegou a hora
fiquei muito muito gripada,
e o que foi pior
o que me impediu de ler
foi que fiquei
sem voz.
se tivesse gravado
o poema antes,
podia ligar a voz
e tocar em vez de ler,
mas eu não tinha
uma voz gravada
e não havia como produzir
voz.
então, combinei
que faria a leitura outro dia
e ainda faltava um mês
para chegar a leitura que vou chamar
aqui de caixa-preta
e eu não tinha ideia
de como eu estaria no dia da caixa-preta
e pensei que se este mês
seguisse o ritmo acelerado
e catastrófico deste e do último ano
tanta coisa já teria
acontecido hoje,
que me dava medo
imaginar.
assim,
esta voz que fala aqui
é a voz de uma marília de um mês atrás
é a minha voz falando a partir do passado,
é a minha voz,
mas sem controle.
há um mês eu não tinha
como prever nada
e fiquei me
perguntando :
– como fazer para essas palavras escritas
há um mês dizerem algo
sobre estar aqui
agora?
e eu não soube responder.
então, fiquei me perguntando
se hoje estaria chovendo
ou fazendo sol,
se faria frio ou não,
e se haveria poeira no ar.
eu sempre me surpreendo
com a poeira que turva a vista :
de repente no meio do dia
uma poeira que se ergue,
uma nuvem
de poeira,
pode ser a poeira vinda das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas
e eu fiquei pensando
se estaria muito seco nesse dia ou não
e pensei que talvez a gente pudesse
fazer silêncio
e deixar a escuta aberta
para ouvir.
talvez a gente pudesse fazer silêncio
e de repente neste silêncio
acontecer de ouvir algo por detrás
dos ruídos das máquinas voadoras que
cruzam o céu.
talvez não desse para ouvir as máquinas voadoras
neste dia,
foi o que pensei,
mas eu me enganei
porque hoje
desde cedo
os helicópteros estão voando.
– vocês estão ouvindo?
um som infernal
estrelas caindo do céu
em cima da cabeça
com as pontas viradas
para baixo.
o som está cada vez mais perto,
posso encostar a mão
se me viro vejo a sombra
em câmera lenta
sobre a cabeça.
imaginem que isso aqui é um quadrado
com drones volantes,
ou uma cena congelada
com o céu cheio de zepelins,
mas o som é um só:
barulho de máquinas
voadoras
pelo céu.
se a gente prestar atenção e fizer silêncio
– se a gente prestar atenção e fizer
silêncio –
pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar.
PELOS GRANDES BULEVARES
[do lado de dentro]
o que ela vê quando fecha
os olhos? linhas sinuosas, um mapa
feito à mão, parece uma pista vista de cima –
os campos cortados ou poderia ser
uma sombra riscando o verde quando passa
lá no alto.
o que ela vê quando
olha em linha reta tentando
descrever
a garota que conheceu no café?
a transformada de
wavelets ou um peixe-lua-
circular em uma região abissal.
não é nada abissal
estar na superfície,
você quis dizer de vidro? esférico?
ou um animal marinho em miniatura :
um polvo de 1 mm?
o cinema é 24 vezes
a verdade por segundo. este segundo
poderia ser 24 vezes a cara dela
quando fecha os olhos e vê.
[de fora]
não é por falta de repetição, mas não
encontrava a palavra exata.
o que ela vê não sabe e tudo fica tremido
se fast forward.
agora fecha os olhos para
entender, para ir mais
devagar.
não se perde alguém por duas
vezes, era o que achava
mas a essa altura chego no mesmo terminal
duas semanas depois e a cena se
repete.
– você está tendo um problema
de realidade, ele cochichou.
– qual é o desastre desta vez?
o que ela vê ao abrir a
claraboia? ao bater aquela foto da
ponte ou quando lê
a legenda :
“nos abismos a vida é submetida
ao frio, escuridão, pressão.
oito mil metros de profundidade”
uma montanha
ao contrário.
ESTEREOFONIA
nunca falei tão sério, disse e olhei
pra cima : seu rosto no meio das gotas,
o guarda-chuva preto como uma moldura redonda
e você parado, cantando, virado para o vidro
do carro, sem ouvir mais nada
só a voz
cantando no meio da chuva
e o eco no vidro do carro.
essa poderia ser a descrição
completa, mas o caminho mais rápido
de um ponto a outro, ele respondeu,
e eu olhei pra cima :
nunca falei tão sério,
disse e, no meio da chuva,
a cena se repete.
podia ter ido embora na hora,
os cílios partidos e aquela voz
cantando – mas o caminho mais rápido,
ele diz, e eu olho pra cima de novo
e lembro da cor malva
e dele dizendo que é quase
malva, tem um pingo que torna tudo
malva, mas a única cor que lembro
era o nublado daquele dia,
a única cor era o
chumbo daquela vez :
eu olhei pra cima e você ia embora
pelas escadas. no último degrau
não se vira mais.
– esse poema contém doze passos, ele diz,
e eu saio contando a distância
enquanto caminho dizendo o poema de cor,
mas daquele dia só me lembro
da cor de chumbo e a voz
em eco no vidro do carro.
olho para cima outra vez
e vejo sempre o mesmo
guarda-chuva preto, moldura para
descongelar cada um dos degraus,
para descongelar a ordem
do verso seguinte :
panorâmica, golpe e caixa-preta.
– você vai sempre pelo som?
– que som?
NOITE AMERICANA
noite 1
no momento de maior intimidade,
ficaram a 1 cm de distância
um do outro.
então me afasto e
vejo a cena em câmera
lenta : ali os dois não
se olham.
está escuro e eles atravessam o espaço.
o ombro dela quase raspa
o braço dele,
os dedos dele
um pouco acima da mão dela.
os olhos fixos no chão
e a respiração em
compasso.
– por quanto tempo você aguentaria ficar debaixo
d`água?
é o que ela parece dizer.
em vez disso, olha o mínimo relógio de pulso
e sabe que seis horas depois já estará
do outro lado.
noite 2
está chovendo
e quando o farol acende
o verde brilha no escuro.
– claro. escuro. claro. escuro.
(quando você descreve
tenho a impressão de sentir o que
acontece)
um trem parte para um ano
específico no futuro. dizem que lá as coisas
não mudam.
está escuro e eles atravessam o tempo.
me interesso por um único viajante
no trem. ele busca uma noite específica
e, de longe, parece
em repouso invernal.
quando a viagem chega ao fim,
ele decide voltar atrás :
– quando me perguntam
por que voltei,
diz ele,
nunca dou a mesma resposta.
noite 3
a câmera agora
mostra a terra do alto.
de cima,
o planeta azul e úmido
tem uma única mancha cor
de ferrugem
que fica perto do pacífico.
neste ponto de umidade zero
o ar é tão fino
e tão limpo,
tão frio
e tão seco
que se pode ver com nitidez
a luz dos objetos celestes
vinda do passado.
no escuro a luz atravessa o tempo e o espaço
e vem dar aqui
neste ponto.
em geral, ela se mostra à noite
como as lembranças
em pause.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com