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Marília Garcia e o novo eu lírico

O eu lírico, em Marília Garcia, ganha seu caráter na sua interação com personagens e construção de cenas

Quando se questiona o estatuto do sujeito lírico ou eu lírico na poesia, é muito comum colocar este ente na dicotomia comum entre este sujeito lírico e o sujeito biográfico, a lacuna que pode se abrir entre um e outro, e que coloca o poeta e a poesia diante de um eu lírico que pode ser um tipo de potência infra ou hiper de sujeito, e que a abordagem autobiográfica se vê como insuficiente para esgotá-lo, um eu lírico que aparece muitas vezes dentro de uma pluralidade e uma complexidade que não se limitam a um eu biográfico.

Marília Garcia, como tradutora, trabalhou os textos de poetas como Nathalie Quintaine e Emmanuel Hocquard, sendo este último objeto de investigação de sua tese de doutorado. Ambos os poetas estão dentro do contexto da poesia francesa, entrando Marília nesta discussão sobre a voz lírica na França a partir da segunda metade do século XX, entrando, por conseguinte, na discussão dos impasses desta voz lírica.

Marília Garcia, em diálogo com estes poetas que traduziu e investigou, entra na senda poética que se coloca em uma poesia de estilo literal, recolocando o eu lírico numa dimensão mais complexa, superando a dicotomia entre abstração simbólica e um eu concreto, entre a linguagem mais pura e metafórica e o mundo empírico.

Contudo, esta linguagem híbrida sai da esfera de uma linguagem poética típica, buscando um universo de referências reais e concretas, como locais e fatos concretos, misturando esta concretude com processos criativos influenciados pelo cinema e pela fotografia, aparecendo aí um eu lírico sem carga autobiográfica, sendo um tipo de eu lírico construído pelo leitor.

Os poemas em Câmera Lenta são em sua maioria enunciados na primeira pessoa, mas este eu não obscurece a presença do mundo real e exterior, sendo este sujeito poético na poesia de Marília construído justamente nesta sua interação com o outro, numa espécie de contraste, uma alteridade que reflete no eu lírico e que o coloca como tal, não mais como um sujeito interiorizado ou refugiado numa abstração simbólica.

O eu lírico, em Marília Garcia, ganha seu caráter nesta sua interação com personagens e com a construção de cenas, o eu lírico aqui se projeta no outro e nos cenários que aparecem nos poemas, os versos em Câmera Lenta se desenvolvem numa ação.

A construção deste eu lírico, num mundo de cenários, personagens e ações está, portanto, num movimento permanente, inacabado, é um eu lírico ativo em seu mundo, uma poesia do real que mantém toda a intensidade característica do eu lírico que existia neste outro contexto da linguagem poética típica, que aqui neste projeto do Câmera Lenta, já está superado por uma nova abordagem ativa, um eu lírico que agora tem um caráter performativo.

POEMAS 

TEM PAÍS NA PAISAGEM? (VERSÃO COMPACTA): O tempo aparece neste poema numa versão bem delineada, sem abstração, sem metafísica, na sensação que se dá entre o registro e o que se vê depois deste mesmo registro, a relação, de percepção, memória e imaginação ganha aqui um corpo poético que questiona, no que temos : “aqui só tenho uma regra :/todos os dias às 10 h/tiro uma foto da ponte./o resto é livre e gira/em torno da pergunta :/como ver o tempo/passar neste lugar?”. A imagem da ponte, que evoca passagem, aqui vira passagem do tempo, no que segue : “atravesso a ponte com 124 passos./quando um barco passa,/uma onda se forma./escrevo a partir das fotos e/depois apago as fotos.”. As fotos também são estas entidades próprias a evocar o tempo e seu enigma, a mistura entre a sensação do momento e a imaginação desta passagem depois que este momento se foi, no que vem : “antes de chegar,/ela me disse que o quarto era iluminado./”é difícil olhar as coisas/diretamente”, penso.” (…) “no teto tem uma claraboia/e todos os dias às 10 h/pergunto :/como ver este instante/passando? sempre tinha tentado/pular as etapas da vida/e apagar o entre.”. A captura impossível, deste vão entre uma coisa e outra, o entre dos instantes, a poeta Marília aqui se esgarça em sua luta temporal, e volta novamente à fotografia, no que vem : “a fotografia divide futuro/e passado – seria possível ver o que/está no meio?”. A fotografia coloca Marília novamente em sua busca desvairada por uma fração que se perde nesta divisão entre passado e futuro, e a desorientação no tempo, fenômeno comum da questão que se coloca com tal intensidade neste poema, se torna inevitável, no que temos : “”um mês depois/ainda pareço um zumbi”,/ela me diz e estamos no dia/7 de fevereiro.” (…) “todos os dias agora/um novo vocabulário se espalha./todos os dias tento entender/o que as pessoas dizem/seria [terrorismo] ou [terremoto]?/todos os dias agora/uma linha de sombra/por onde passo e aquela/poeira cinza/e colante.”. A imagem da ponte, neste poema, é tanto a referência de passagem, moldando a ideia de tempo contida no poema, como seu enigma que ecoa e reverbera em seu mistério, temos : “procuro a foto da ponte/feita um mês antes./seria possível ver/algum indício do que aconteceu?” (…) “olho agora para este texto que digito./como ver alguma coisa aqui?” (…) “a data 13 de novembro é a data/13 de novembro e na quarta vez/que repito 13 de novembro/eu vejo esta/data.”. Aparece um espectro, pode ser uma explicação, em vão, a poeta divaga novamente, o poema se torna evanescente, de súbito, diante desta aparição do fantasma de uma mulher, no que temos : “por fim, vou até ela :/hoje é dia 13 de novembro/e saio de casa às 9 h 55./quando chego ao rio,/sinto um vento nas costas/e lembro do fantasma que ronda a ponte./ela era casada com um homem/que estava na guerra/e teve um amante que lutava/pelo país inimigo.” (…) “contam que, em uma noite de inverno,/uma noite fria e escura,/ela ficou na ponte esperando o amante/durante muitas horas/e ele não veio./ela morreu congelada/ou caiu no rio.”. O tal fantasma some entre os carros, o poema se mistura entre o mundo real e o imaginário e se esvai numa coda indefinida, o poema não se responde, deixa tudo em aberto, e termina com a ideia perturbadora do desaparecimento : “agora me sento no parapeito da ponte/e olho para o outro lado do rio./tem país na paisagem?,/pergunto,/e, enquanto isso, ao longe,/o fantasma vai indo embora/no meio dos carros,/ela caminha/em plena luz do dia/e some.”.

PLANO B: O poema possui um caráter espacial complexo e evoca o mar, novamente o spleen, e Marília Garcia navega aqui com uma tonalidade concreta e desconcertante, no que temos : “hola, spleen, disse. nos cruzamos/no fundo do mar. você sentado no banco de trás/olhando pelo vidro azul-cobalto/a 3 mil quilômetros do ponto em/que eu o deixara.”. A ideia de espaço está bem presente no poema, que é um poema anguloso, com meandros, e que se expande com a firmeza de imagens inteligentes, no que vem : “pensava na carta sem remetente,/pensava em alguma maneira de dizer,/pensava nas/esculturas sonoras” (…) “era como descobrir o sulco/fechado de um disco e ficar/rodando no loop daquela melodia/circular. preciso de uma língua/que defina isso.”. O poema não fala da latitude, mas fala do mar, segundo a poeta Marília, e que tem : “hola, spleen, disse,/mas não falava da latitude/no mapa, eram peixes/no fundo do oceano com a cartilagem/luminosa derretendo nos olhos” (…) “a vingança começa num/aquário :/é como furar a realidade/com a realidade, ele dizia,/ficar no quarto/medindo o nível do mar/para descobrir onde pôr/os peixes”. A realidade é furada com o olhar poético, aqui tudo é possível, medir o nível do mar para, simplesmente, resolver um problema trivial, onde pôr os peixes.

UM QUADRADO QUE CEGA: A ideia de desorientação, a composição da luz, e o leitmotiv do poema, um quadrado que cega, temos :”aqui a luz faz o contrário de/iluminar : é como/a desorientação ou a serendipia. blind/light, um quadrado que/cega.”. Tentar aplainar o esférico, ideia estrambótica do poema, e que gera buracos, no que temos : “o último jantar era silencioso,/só conseguia pensar em uma escala/que planificasse o esférico./o mundo já não seria redondo/mas uma superfície plana/cheia de buracos.”. Buraco, queda, hélices, a ideia do giro, a hélice? A queda de um corpo, o título do livro, câmera lenta, poema estranho, angustiante, e que termina : “o que eu penso ao lembrar/de você é um buraco./só um buraco./um buraco cegando tudo./diante do buraco, as hélices desenham a/cena em pleno ar :/imagina/que desce durante o giro, o corpo em/câmera lenta caindo.”.

POEMAS

TEM PAÍS NA PAISAGEM?

(VERSÃO COMPACTA)

1.

aqui só tenho uma regra :

todos os dias às 10 h

tiro uma foto da ponte.

o resto é livre e gira

em torno da pergunta :

como ver o tempo

passar neste lugar?

penso no infra –

– ordinário do georges perec

e todos os dias

vou até a ponte

e tiro uma foto

que possa me dizer

alguma coisa

sobre estar aqui.

a ponte tem três arcos.

a água o rio é verde.

atravesso a ponte com 124 passos.

quando um barco passa,

uma onda se forma.

escrevo a partir das fotos e

depois apago as fotos.

(você poderia imaginar uma foto

do primeiro dia?

isso aqui é uma

expedição)

2 .

antes de chegar,

ela me disse que o quarto era iluminado.

“é difícil olhar as coisas

diretamente”, penso.

são muito luminosas ou muito

escuras.

no teto tem uma claraboia

e todos os dias às 10 h

pergunto :

como ver este instante

passando? sempre tinha tentado

pular as etapas da vida

e apagar o entre.

como atravessar os meses neste lugar

e ver o que acontece?

a fotografia divide futuro

e passado – seria possível ver o que

está no meio?

3 .

“um mês depois

ainda pareço um zumbi”,

ela me diz e estamos no dia

7 de fevereiro.

chego na ponte às 10 h para

a foto diária e tem

um caminhão em cima

da faixa de pedestre.

espero alguns segundos

até ele andar

e aperto o clique.

volto para casa com pressa

e leio o aviso na porta

de entrada.

há um mês colocaram

este aviso ali e o país

entrou em estado de alerta.

todos os dias agora

um novo vocabulário se espalha.

todos os dias tento entender

o que as pessoas dizem

seria [terrorismo] ou [terremoto]?

todos os dias agora

uma linha de sombra

por onde passo e aquela

poeira cinza

e colante.

4 .

procuro a foto da ponte

feita um mês antes.

seria possível ver

algum indício do que aconteceu?

procuro a foto do dia seguinte :

um caminhão e quatro pessoas.

tento ver alguma mudança

de um dia para

o outro.

olho agora para este texto que digito.

como ver alguma coisa aqui?

tento me fixar no desenho das letras,

na tinta impressa sobre

o papel do livro.

a data 13 de novembro é a data

13 de novembro e na quarta vez

que repito 13 de novembro

eu vejo esta

data.

5 .

por fim, vou até ela :

hoje é dia 13 de novembro

e saio de casa às 9 h 55.

quando chego ao rio,

sinto um vento nas costas

e lembro do fantasma que ronda a ponte.

ela era casada com um homem

que estava na guerra

e teve um amante que lutava

pelo país inimigo.

contam que, em uma noite de inverno,

uma noite fria e escura,

ela ficou na ponte esperando o amante

durante muitas horas

e ele não veio.

ela morreu congelada

ou caiu no rio.

olho para a esquina

em busca do espectro dela.

olho ao redor e a ponte tem três arcos.

a água do rio é verde.

atravesso a ponte com 124 passos.

quando um barco passa,

uma onda se forma.

ouço o barulho da onda

e o do barco.

agora me sento no parapeito da ponte

e olho para o outro lado do rio.

tem país na paisagem?,

pergunto,

e, enquanto isso, ao longe,

o fantasma vai indo embora

no meio dos carros,

ela caminha

em plena luz do dia

e some.

PLANO B

hola, spleen, disse. nos cruzamos

no fundo do mar. você sentado no banco de trás

olhando pelo vidro azul-cobalto

a 3 mil quilômetros do ponto em

que eu o deixara.

hola, spleen, disse. uma linha esconde

outra linha, a voz esconde o que

existe entre os dois. pensava na carta sem remetente,

pensava em alguma maneira de dizer, pensava nas

esculturas sonoras (não havia

um plano c? para onde

seguia)

era como descobrir o sulco

fechado de um disco e ficar

rodando no loop daquela melodia

circular. preciso de uma língua

que defina isso.

hola, spleen, disse,

mas não falava da latitude

no mapa, eram peixes

no fundo do oceano com a cartilagem

luminosa derretendo nos olhos

e a única preocupação quando

entrou ali era o som por detrás da voz dela :

saber se está triste há um ano

ou há 24 horas.

(na volta, passa a colecionar

os objetos. a vingança começa num

aquário :

é como furar a realidade

com a realidade, ele dizia, ficar no quarto

medindo o nível do mar

para descobrir onde pôr

os peixes)

UM QUADRADO QUE CEGA

aqui a luz faz o contrário de

iluminar : é como

a desorientação ou a serendipia. blind

light, um quadrado que

cega.

a pergunta certa podia ser :

o que você está fazendo enviando postais

de tão longe? mas emudecia,

congelava quando as coisas

ficavam assim.

o último jantar era silencioso,

só conseguia pensar em uma escala

que planificasse o esférico.

o mundo já não seria redondo

mas uma superfície plana

cheia de buracos.

deste ponto de vista,

o verde não seria mais verde.

precisa agora de

24 dimensões para caber e, então,

ela entra em cena

silêncio.

aqui a luz faz o contrário de

iluminar. – você já disse isso,

ele murmura e me encara.

mais uma vez aparecem o 2 e o 4 :

primeiro para somar 48.

depois as placas riscam o ar e se repetem

a cada esquina. 2. 4. 2. 4.

não sabe dizer que lugar é esse,

mas segue colecionando os objetos.

se o portão se deformasse,

talvez pudesse ser direta, pensa.

se procurar as palavras –

– chave encontrará

números, mas também

seres marinhos, cílios, quilômetro, retina e

eletricidade. 2. 4. 2. 4.

o que eu penso ao lembrar

de você é um buraco.

só um buraco.

um buraco cegando tudo.

diante do buraco, as hélices desenham a

cena em pleno ar :

imagina

que desce durante o giro, o corpo em

câmera lenta caindo.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogpot.com


Marília Garcia e suas máquinas voadoras

Em Câmera Lenta, de 2017, Marília Garcia faz um percurso que busca testar os limites da poesia


https://www.seculodiario.com.br/cultura/marilia-garcia-e-suas-maquinas-voadoras

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