Descartes possui uma produção intelectual genial, porém irregular
Voetius era um professor da universidade de Utrecht, adversário da expansão do cartesianismo na Holanda, e pastor. Ele acusava Descartes de ateísmo, e o filósofo contra-atacou com virulência.
Mas o tom mudou, para ambas as partes, diante das autoridades de Utrecht, que lhes impuseram silêncio, e tal falta de moderação de Descartes diante de Voetius ameaçou a sua permanência na Holanda. Ele voltou para a França em 1644, e em 1647 buscou auxílio, voltando então para a Holanda para restabelecer a polêmica com Voetius.
Segundo Théo Verbeek, em seu La Querelle d’Utrecht: “Se o cartesianismo acabou conquistando as universidades dos Países Baixos, pode-se dizer que foi de certa forma apesar de Descartes, que constituiu o maior obstáculo à sua própria filosofia”.
E Pàges descreve Descartes de forma contundente: “Não tinha a habilidade de um Pascal pra dar grandes passos científicos e financeiros. Comparado ao promotor da experiência no pico de Dôme, ao inventor da calculadora, e da primeira companhia de ônibus parisiense (em 1662!), Descartes parecia um sonhador, um amador. Ele se queixava: era preguiçoso, indolente, gostava de dormir dez horas por dia, devanear, dedicar seu tempo aos amigos…”.
Por conseguinte, Descartes possui uma produção intelectual genial, porém irregular, o que reúne mais cartas do que livros, mais livros inacabados do que finalizados, jamais fazendo o seu Tratado da Moral, que tanto projetou.
Tinha ainda obras científicas de ambições desmedidas, mas que se revelaram trabalhos fragmentados e com produções interrompidas. Segundo Pàges, reportando as palavras de Samuel de Sacy, “ele nos anuncia um inventário geral do mundo e para após algumas pesquisas”. O próprio Descartes confessa em seu Discurso que sempre odiou “a profissão de escrever livros”.
Descartes levou alguns golpes na Holanda, de um porte altivo, foi até a Suécia, contudo, já combalido, o Descartes da Suécia é triste, autor de um balé, La Naissance de la Paix, distante do grandioso projeto anunciado no Discurso do Método. Suas cartas de Estocolmo já nos revelam um temperamento depressivo. Morreu rapidamente, aos 54 anos, no primeiro vento frio que lhe pegou.
Depois de ter anunciado que trabalhava numa medicina que o levaria a viver cem anos, morreu aos 54, e Pàges reporta à zombaria de uma gazeta holandesa inimiga: “Um filósofo que tinha jurado viver cem anos acaba de morrer em Estocolmo”.
E Pàges ainda reporta o francês Saint-Evremond, que ironizou sobre seu estado de saúde: “Havia um pouco de desordem em sua glândula (pineal), segundo o que diziam muitos sábios que o conheceram na Suécia e na Holanda. Na verdade, ele morreu porque a rainha da Suécia não quis abandonar a leitura da Moral de Aristóteles para seguir a opinião de sua glândula”.
Em relação a sua obra maior, o Discurso do Método, pouco repercutiu em seus contemporâneos, nem na segunda edição. Descartes publicou sem seu nome, e hoje a versão publicada não possui três ensaios que lhe eram anexos em 1637: a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria.
Tais ensaios, contudo, não funcionavam como apêndices, uma vez que a concepção de Descartes para seu discurso era funcionar como uma apresentação para mecenas, acionários e patrocinadores, destinada para as três aplicações desenvolvidas na sequência do livro.
Segundo a narrativa de Pàges, Descartes “fazia uma ciência ‘aplicada’ à arte da guerra, à construção de armas, à medicina, à óptica. Era um laboratório de pesquisa em si próprio. Ele tinha então necessidade de mecenas, de gente de dinheiro e de empresas, de aristocratas ou de burgueses que não liam latim. Eis porque o Discurso foi escrito em francês.
Eis porque ele foi confidencial. Diríamos hoje “direcionado”. Como pagamento, Descartes se contentou com duzentos exemplares gratuitos que ele mesmo difundiu. O autor não esperava, com isso, a notoriedade (ele já a tinha aos 41 anos), mas a eficácia”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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Descartes e a maconha – parte II
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