Juiz de Linhares baseia-se no princípio da precaução e em estudos sobre contaminação da água e pescado
O juiz da 1ª Vara Federal de Linhares, no norte do Estado, Wellington Lopes da Silva, negou o recurso impetrado pela Samarco e reafirmou a decisão, publicada em julho último, de manter proibida a pesca na Foz do Rio Doce e no litoral compreendido entre Barra do Riacho, em Aracruz, e Degredo/Ipiranguinha, em Linhares.
A proibição foi estabelecida em fevereiro de 2016 – atendendo a pedido da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal e da Federação das Colônias e Associações de Pescadores e Aquicultores do Estado do Espírito Santo (Fecopes) na Ação Civil Pública nº 0002571-13.2016.4.02.5004/ES – e continua vigente por tempo indeterminado.
Em sua sentença, o magistrado baseia-se no princípio da precaução, “tal como conceituada no princípio n. 15 da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro, em 1992”, em estudos ambientais independentes apresentados pela Rede Rio Doce Mar (RRDM) e pela Lactec e na Nota Técnica nº 8/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), bem como na Nota Pública subsequente da mesma instituição, voltada a esclarecer uso indevido da primeira pela Renova.
“De acordo com os resultados apresentados pelo Lactec e pela Rede Rio Doce Mar, há vários elementos em elevadas concentrações nos organismos aquáticos presentes na área atingida pelos rejeitos da barragem de Fundão, dentre os quais destacam-se o arsênio (As), o mercúrio (Hg), o cádmio (Cd) e o chumbo (Pb), cuja toxicidade e risco de causar câncer são consideráveis”, assinalou o magistrado.
No recurso ajuizado, a Samarco novamente faz uso indevido do conteúdo da Nota Técnica nº 8/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em que é informada uma quantidade máxima de pescado da região contaminada que pode ser consumida para evitar riscos à saúde humana.
Após a publicação da NT, a Renova publicou matéria em seu site alegando que o pescado está livre de contaminação, tendo como um dos objetivos, respaldar o cancelamento do pagamento de auxílio financeiro emergencial (AFE) e lucro-cessante aos pescadores da região.
Imediatamente após a matéria, no entanto, o MPF e a Defensoria Pública publicaram nota repudiando a atitude da Renova e a própria Anvisa. Em seguida, uma Nota Pública desmentiu a Renova e afirmou que não estava autorizado o consumo do pescado na Foz do Rio Doce e no litoral diretamente afetado pelo rompimento da Barragem de Fundão.
Conhecedor do histórico de desinformação da Renova e de posicionamento da Anvisa sobre o caso, o magistrado destacou que valeu-se das conclusões da Anvisa, reconhecendo “que as limitações e ressalvas apontadas pela própria agência imprimem inegável grau de incerteza quanto à segurança no consumo dos espécimes capturados na área atingida pelos rejeitos da barragem de Fundão”. Além disso, salientou que a proibição da pesca na região tem “duplo fundamento (a tutela da saúde pública stricto sensu e a proteção da fauna e flora marinhas)”.
O juiz Wellington Lopes da Silva também decidiu oficiar a Anvisa, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), indagando-os sobre “a possibilidade de cooperarem com o esclarecimento das questões discutidas nesta ação, por meio da elaboração de parecer específico e atualizado quanto à segurança no consumo de peixes e crustáceos capturados na foz do Rio Doce e região costeira adjacente (indagação a ser feita à Anvisa); e à necessidade de impor restrições à atividade pesqueira na foz do Rio Doce e região costeira adjacente (indagação a ser feita ao Ibama e ao ICMbio)”.
À Anvisa, sublinha, pede que “sejam produzidos estudos nos moldes daqueles que conduziram a elaboração da Nota Técnica Anvisa n. 8/2019, desta feita, porém, com o estabelecimento de critérios – construídos dialogicamente pelas partes no processo (MPF, DPU, Samarco) – tendentes à obtenção de uma resposta mais segura possível quanto aos pontos a serem avaliados”.
‘Renova espera a resiliência da natureza’
Em coletiva de imprensa realizada na última quinta-feira (29) pela Força-Tarefa Rio Doce – formada pelos MPF, Ministério Público Estadual de Minas Gerais (MPMG) e Defensorias Públicas da União e estaduais do Espírito Santo e Minas Gerais (DPU, DPES e DPMG), o procurador da República em Linhares (MPF/ES), Paulo Henrique Camargos Trazzi, ressaltou que, diante das conclusões da Anvisa, da RRDM e da Lactec, é possível sim afirmar que o consumo do pescado contaminado pela Samarco/Vale-VHP “traz riscos à saúde humana”.
Responsável por apresentar um balanço das ações de reparação dos danos ambientais nos últimos cinco anos, o procurador teceu profundas críticas à atuação da Fundação Renova. “Não foi feito quase nada”, resumiu, citando que apenas algumas plantas rasteiras foram plantadas, ao invés de reflorestamento, tampouco houve retirada da lama contaminante das áreas onde ela se assentou. “A Renova espera a resiliência da natureza”, criticou.
“Por mais que haja uma massiva propaganda da Renova pra mascarar a realidade, os fatos mostram que nós temos entre 600 e 800 km de rio contaminados, vários afluentes contaminados e o litoral contaminado, gerando dificuldade de reprodução de animais, fauna contaminada e lençol freático do Espírito Santo com risco de contaminação”, descreveu.
O procurador também ressaltou a mentira empregada pela Renova de que os níveis de contaminação do Rio Doce atualmente são os mesmos de antes do desastre. “Em relação ao Espírito Santo essa comparação não é possível, porque a Renova não tem estudos sobre a contaminação antes do desastre. E a contaminação por metais pesados no Rio Doce acontece de uma forma que eles sedimentam. Nesse período do ano tende a ficar mais baixo, mas nos períodos de cheia os contaminantes voltam à superfície, aumentado os níveis de contaminação. A Renova tem comparado os regimes de baixa atual com os regimes de cheia anterior. Tem que fazer comparação de forma transparente e leal”, apontou.
A RRDM é composta por 28 universidades federais, das quais algumas já vinham realizando estudos ambientais na região desde antes do rompimento da Barragem de Fundão, em novembro de 2015. Imediatamente após o crime, ainda em 2015, pesquisadores se lançaram a colher amostras para estabelecer comparações e dimensionar os impactos da chegada da lama tóxica de rejeitos de mineração da Samarco/Vale-BHP.
Mais de dois anos após esses estudos focados nos impactos do crime, foi celebrado acordo de cooperação técnica entre a Fundação Renova e a Fundação Espírito-Santense de Tecnologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Fest/Ufes) para formalizar a execução, pela Rede, do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), com custos financiados pela Renova, conforme estabelecido no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado em março de 2016 entre as mineradoras responsáveis pelo crime Samarco, Vale e BHP Billiton, a União, e os estados do Espírito Santo e Minas Gerais, além de autarquias ambientais federais e estaduais.
Em seu primeiro relatório anual no âmbito do acordo de cooperação, a RRDM estabeleceu nexos causais entre os rejeitos de mineração e as severas contaminações da biodiversidade aquática no litoral e na porção capixaba do Rio Doce. Após a validação do relatório pela Câmara Técnica de Biodiversidade do Comitê Interfederativo (CTBio/CIF), a Renova anunciou a intenção unilateral de rescindir o contrato com a Fest/Ufes, alegando tratar-se, juridicamente, de uma “decisão imotivada” e uma mera troca de fornecedor para o serviço de monitoramento.
A rescisão unilateral foi repudiada pela CTBio, pelo CIF, sendo também proibida pelo juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte/MG, que, na última sexta-feira (30), determinou que o acordo de cooperação seja mantido e que seja feita uma audiência de conciliação em dezembro próximo para tratar de possíveis ajustes no contrato, visando aperfeiçoamento do trabalho.
Proibição deve ser ampliada
Já a Lactec é a expert contratada pelo MPF para elaborar o diagnóstico socioambiental dos danos decorrentes do crime. Há um ano, a consultoria chegou a recomendar a ampliação da proibição judicial, tanto para uma área maior que a atual quanto para outras espécies ainda permitidas. O motivo foi a detecção de organismos contaminados com altas concentrações de elementos potencialmente tóxicos (EPTs) em pontos que extrapolam o polígono alvo das sentenças da 1ª Vara Federal de Linhares.