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Pedagogia da Alternância provê ‘aprendizagem dialógica’ com realidades das famílias

Instituições comunitárias de caráter público não estatal, as EFAs inspiram soluções para os desafios da pandemia

Mepes

É possível construir um sistema de aprendizagem que dialoga com a realidade dos estudantes e suas famílias; que incentiva a autonomia da criança, do adolescente e do jovem; que aproxima a família do dia a dia da escola de forma colaborativa; e que promova a vida como valor supremo e o amor próprio e fraternal como meio e fim da educação. 

Mais do que uma diretriz no plano político pedagógico de uma escola ou a declaração de uma utopia educacional, a descrição acima é parte da realidade de milhares de estudantes, suas famílias e comunidades, por meio da Pedagogia da Alternância (PA), que, no Brasil surgiu em solo capixaba em 1968, com a criação do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (Mepes) por frades jesuítas inspirados na experiência francesa. 


O nome ressalta a prática em que o aluno alterna uma semana integralmente na escola (Tempo Escola), dormindo e se alimentando nos internatos das escolas, e uma semana em casa (Tempo Comunidade). 
Passados 55 anos, a Pedagogia da Alternância se firmou como principal sistema para a Educação do Campo e está presente em todo o País. No Espírito Santo, é aplicada em escolas de ensino fundamental e médio em redes municipais, estadual e nas Escolas-Família-Agrícola (EFAs) do Mepes, que hoje estão em 17 municípios. 
Durante a pandemia do coronavírus, a PA teve sua superioridade exacerbada, pois o lastro de diálogo construído com as famílias e de autonomia crescente dos estudantes permitiram ao menos atravessar com menos atropelos os desafios do ensino remoto numa realidade ainda distante da universalização tecnológica. 
Infelizmente, uma política em curso no país na última década fechou milhares de escolas, cerca de 500 apenas no Espírito Santo, entre 2008 e 2018, pelo primeiro governo de Renato Casagrande e o último de Paulo Hartung, segundo levantamento feito pelo Comitê Estadual de Educação do Campo (Comeces). 
A reabertura dessas escolas e regulamentação da PA são prioridades do Comitê e já foram expostas ao atual governo de Casagrande, que reabriu o diálogo com a Educação do Campo após quatro anos de portas literalmente fechadas para as organizações do setor. 
Nem estatal nem privado

Com gestão própria e parcerias essenciais com o Estado e municípios, que viabilizam seu funcionamento, as escolas do Mepes ficaram mais protegidas do lamentável fenômeno de fechamento em massa de unidades escolares.
Mepes

Na Sinopse Estatística da Educação Básica, da Secretaria de Estado de Educação (Sedu), as EFAs compõem uma rede privada rural, mas a realidade é mais criativa e complexa. “Nós somos da esfera púbica, mas não estatal. Somos comunitários, e não privados”, compara o assessor pedagógico do Mepes, Joel Duarte Benisio. “Somos instituições comunitárias de caráter público não estatal”, cita, por fim, a definição mais aceita dentro do Mepes. 

E como acontece na prática a gestão administrativa e financeira de uma escola comunitária não-privada, pública e não-estatal? Noventa por cento dos recursos são públicos, informa Joel. E o restante vem de alguns projetos específicos, com organismos nacionais e internacionais, e das contribuições voluntárias das famílias para a alimentação dos estudantes.

“É uma contribuição, não é taxa, nem obrigação. Tem escolas que as famílias levam produtos ao invés de dinheiro. A verdade é que nenhuma família vai deixar de estudar porque não contribuiu”. 

Obrigatória é a participação na associação de famílias que coadministra a escola junto com o Mepes. “O Mepes é a entidade regional e cada escola tem sua entidade local. São essas duas associações que contribuem com o processo formativo: a associação local, das famílias, e a associação Mepes”. 
Essa gestão associativa e a Pedagogia da Alternância, ressalta Joel, é que viabilizam os dois pilares das EFAs: a formação integral do estudante e o desenvolvimento do meio em que ele vive, no caso, o campo. 
Em conversa com Século Diário, o assessor pedagógico do Mepes fala sobre outros aspectos da experiência das EFAs durante este primeiro ano pandêmico, enfatizando a importância da Pedagogia da Alternância para manter o vínculo entre a família e a escola e garantir um aproveitamento melhor do conteúdo que foi possível trabalhar nesses meses. 
Autonomia para estudar
O Tema Gerador e o Plano de Estudo, basilares da Pedagogia da Alternância, se mostraram ferramentas potentes para dar mais autonomia para o estudante conduzir seus estudos em casa, com o apoio possível da família, que, por sua vez, também já conhece e utiliza o método normalmente. Isso mesmo para o ensino fundamental.
O aluno, elenca Joel, tem o plano de estudo, o caderno de acompanhamento, o caderno da realidade e as experiências em casa, todas essas, mediações didático-pedagógicas que constroem a característica integração entre tempo-escola e tempo-comunidade. 
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Outra questão que contribui, salienta, é que as escolas foram orientadas a uma “aprendizagem significativa”. Assim, as temáticas estudadas, que sempre buscam estabelecer relação com a realidade do campo, durante o ensino remoto, trouxeram aspectos da pandemia para o plano de estudo. Algumas disciplinas, inclusive, se uniram em atividades conjuntas sobre os efeitos do coronavírus na sociedade. 

“Uma aprendizagem que faça sentido para família e para o estudante é fundamental”, assevera Joel. “Trabalhamos com a ideia de que o conhecimento deve ser visto sempre de uma forma dialógica com a realidade e que o processo de conhecimento, os temas a serem estudados, devem partir da realidade do sujeito e em diálogo com os sujeitos”, explica. “É o ‘pulo do gato’ que Paulo Freire deu na década de 1960”, brinca, em reverência ao Patrono da Educação do Brasil (Lei nº 12.612/2012) e um dos educadores maios respeitados e estudados no mundo. 

Busca ativa

As escolas-família-agrícola já tinha no seu planejamento usual, antes da pandemia, as visitas às famílias “É parte integrante do processo formativo”, afirma Joel. Por isso, no atual momento, em que a chamada busca ativa se tornou imperativa para evitar a evasão escolar, as tradicionais visitas têm sido usadas para entregar as atividades impressas a quem tem dificuldade em buscá-las na escola (mediante agendamento prévio), para oferecer reforço pedagógico aos estudantes que apresentam mais dificuldade em acompanhar as atividades remotas e para conversar mais proximamente com as famílias para compreender o contexto em que essa dificuldade acontece.

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“Houve acompanhamento personalizado aos que precisaram mais. Nesse momento, precisa de tutoria mesmo”, ressalta, lembrando que os professores em grupo de risco não realizaras as visitas, que são organizadas com base no rodízio entre os que não são de risco. 

As escolas, no entanto, ficaram abertas, para atender, de forma personalizada e mediante agendamento, aos estudantes concludentes do ensino médio e aos de demais turmas, caso tenham necessidade, por alguma dificuldade com o ensino remoto. 

Relações trabalhistas
A ausência de Designação Temporária (DTs) entre os professores das EFAs – ao contrário das redes públicas, onde essa precária relação trabalhista corresponde a mais da metade dos educadores em atividade – e uma distribuição do tempo mais realista com o trabalho desenvolvido, merece ser destacadas como fatores que favorecem sobremaneira o comprometimento dos estudantes com o aprendizado e a interação com as famílias. 
“Todos os professores são CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas], celetistas”, assegura o assessor pedagógico do Mepes. E das 40 horas semanais de contrato, no máximo 60% são em sala de sala. Há casos em que o percentual é de 30%, mas em média fica entre 40% e 60%. Nas redes públicas, 66% é, obrigatoriamente, sala de aula e apenas um terço do tempo (33%) é de planejamento. 
Nas EFAs, para além da sala de aula e planejamento, os educadores também se dedicam às visitas às famílias, acompanhamento psicossocial do estudante, oficinas agropecuárias na propriedade da escola e reuniões de equipe. “Há um acompanhamento pedagógico, social e antropológico dos estudantes e suas famílias”, revela.
Quando e como voltar 

O sistema remoto tende a continuar funcionando em boa parte do ano letivo de 2021. “O cenário mais positivo é que seja híbrido. Mas é possível que comece ainda não-presencial. O próprio CNE [Conselho Nacional de Educação] já sinalizou que 2021 pode ser somente não-presencial”, pondera Joel, destacando que “qualquer retorno está condicionado ao diálogo e à relação com a família”. 

Mesmo sem definida a data do início do sistema híbrido (que deverá alternar uma semana em casa e uma semana no internato da escola, como já caracteriza a PA), ou presencial, todas as escolas já elaboraram seus planos estratégicos de retorno das aulas presenciais, seguindo as portarias conjuntas da Sedu e Secretaria de Estado de Saúde (Sesa) e as resoluções do CNE e do Conselho Estadual de Educação (CEE). 
Em 2020, as aulas normais seguem até o dia 18 de dezembro, sendo que no final de janeiro haverá uma nova oportunidade para os que precisarem compreender melhor o conteúdo. Já os estágios e projetos dos concludentes do ensino médio, podem ser feitos até março. O currículo 2020 e 2021, no entanto, está integrado, para “não aumentar a desigualdade e a exclusão”. 
Adequações pedagógicas ao sistema híbrido
Mais do que administrativo, o sistema híbrido de ensino que deve começar em algum momento de 2021, vai exigir grande esforço pedagógico para ser implementado, a partir de uma revisão do currículo, do raio-X por cada turma, sobre quantos alunos retornam, e tudo isso de forma a não penalizar professores nem estudantes. 
“O sistema híbrido é mais pedagógico do que administrativo, porque no final das contas, teremos atividades presenciais e não-presenciais”, expõe, lembrando que, devido às limitações do internato, haverá sempre menos da metade dos alunos em aulas presenciais. Essa minoria demandará, por sua vez, maior esforço com higienização dos ambientes, para o qual o governo do Estado sinalizou apoiar. “Já apresentamos ao Estado uma solicitação e há uma sinalização de atendimento dessa demanda, na compra de insumos e contratação de mais auxiliares de limpeza”, diz.
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Educação libertadora

Em todas essas modificações e adaptações, ressalta o educador, está o bem-estar das famílias. “Encontrar-se pra conhecer; conhecer-se para caminhar juntos, caminhar junto para crescer; crescer para amar-se mais”, recita, consagrando o princípio elementar do Mepes, poética e mística ditada por um de seus fundadores, Padre Humberto Pietrogrande.

“O mais importante se dá através do princípio da primazia da vida sobre a escola. Reconhecer que o tempo-comunidade é um tempo de aprendizagem. Isso muda toda a lógica do ensino”, reforça, agora referindo-se ao “princípio freiriano” [novamente Paulo Freire], de que todo mundo aprende ao ensinar e ensina ao aprender. “Na construção do conhecimento, é preciso essa perspectiva dialógica. Não dá pra pensar em ensino e aprendizado com alguém que transmite conhecimento, mas sim em pessoas que aprendem juntas, aprendem em comunhão”. 
No centenário de Paulo Freire, em 2021, as EFAs participarão das comemorações coordenadas pelo Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (CEAAL), que, em conjunto com diversos movimentos, organizações e entidades sociais, constroem a Campanha Latino-Americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire.
O centenário freireano se completa no próximo 19 de setembro e, antes, em março, o Mepes comemora os 50 anos do seu Centro de Formação. O ano promete muitos momentos de celebração, em atividades pedagógicas, seminários, encontros e outros processos formativos. 
Cada vez mais, convoca Joel, é fundamental manter viva a Pedagogia do Oprimido: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

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