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‘Invasão Literária’ distribuiu 400 livros em comunidades de Vitória

Obras infantis de valorização da negritude foram a maioria das levadas à Piedade, Moscoso e Caratoíra

Vitor Taveira

Foi um domingo de muito sol e sorrisos na Piedade, em Vitória, embora muitos deles escondidos sob as máscaras, mostram que não está tudo bem e que é preciso cuidado. Do pé do morro se juntou uma equipe de 15 voluntários, com o desafio de distribuir livros focados no empoderamento da negritude e das mulheres. Com uma meta inicial de conseguir arrecadar 60 livros infantis, o projeto “Invasão Literária” conseguiu a doação de mais de 400 obras, a maioria infantil e infanto-juvenil, público principal que a ação pretendia atingir.

A iniciativa se inspirou em projeto similar realizado no Rio de Janeiro e começou com uma campanha puxada pela psicóloga Luizane Guedes, com a meta de conseguir 60 livros para a ação de Natal da Piedade. As boas intenções foram multiplicadas pela solidariedade. Além das 60 crianças que receberam as obras durante o ato, outros 210 livros foram distribuídos pela comunidade de casa em casa na Piedade e na comunidade vizinha do Moscoso, além de 130 que foram doados para ação Natal das Crias, realizado pelo coletivo Mulheres Unidas do Caratoíra (Muca).

A primeira recepção da caravana literária foi na pequena Capela São Vicente de Paulo, na Piedade, com as cadeiras espaçadas e quase todas ocupadas pelas crianças. À frente, do simples altar, Sandra Reis, que faz as vezes de anfitriã. Sua primeira mensagem é para acolher a todos, no templo católico, inclusive aqueles que são de outras religiões. Com sua hábil fala de catequista popular, voltada principalmente para os pequenos, conta como era o Natal de sua infância naquele mesmo morro, que ainda não tinha muito mais do que uma dezena de casas. Fala das ceias simples, mas compartilhadas entre toda comunidade, e desconstrói a ideia capitalista de presente, ligada à mercadoria, e lembra da importância da presença.

Vitor Taveira

Ela aponta para os brinquedos em sacolas coloridas ao seu lado e diz que não é para as crianças – ou ainda não, que é preciso ter paciência e saber esperar. “Papai Noel é idoso, não pode vir este ano porque é do grupo de risco”, brinca, embora falando sério. Terminada a conversa, é hora de comer e sair para o espaço do Instituto Raízes, um centro cultural comunitário onde há surpresas para as crianças.

Liderança comunitária há pouco mais de um ano, Sandra Reis ganhou o Prêmio Estadual de Direitos Humanos na categoria Personalidade. No ano anterior, na categoria Instituição, o prêmio foi para o Instituto Raízes, cuja placa de homenagem se encontra posicionada no alto de uma caprichosa pirâmide de instrumentos musicais, uma honrosa simplicidade na comunidade onde surgiu a primeira escola de samba do Espírito Santo.

Na entrada do Raízes, depois de álcool em gel na mão de cada um, as crianças e adultos se encaminham para o fundos, ao ar livre, entre a arte dos muros e o esplendor das grandes árvores que fazem parte do entorno do Parque Municipal da Fonte Grande.

A educadora Jamile Menezes conta para as crianças sentadas sobre uma personagem real, presente em um dos livros infantis: Carolina Maria de Jesus, mulher negra, catadora de papel, nascida na favela, que queria ser escritora. E foi. A mensagem é repetida às crianças: elas podem ser o que quiserem! O que não pode é desistir.

Vitor Taveira

Com pequenos testes sobre Carolina começa a distribuição dos principais presentes da Invasão Literária: os livros. Tem pra todo mundo. Alguns ainda não sabem ler e é inevitável as rodinhas onde os adultos leem para os pequenos. Entre os autores das obras, escritores e também artistas conhecidos por outras artes, como o rapper Emicida e os atores Lázaro Ramos e Rodrigo França. Histórias como a de Carolina Maria de Jesus, de Zacimba Gaba, que lutou contra a escravidão no Espírito Santo, ou de Malala, a menina que lutou pelo direito de estudar no Paquestão, entre outras.

Depois dos presentes e leituras, o grupo de “invasores literários” segue pela comunidade acompanhada por moradores para chegar às casas nas quais as crianças não foram ao evento e também para distribuir as obras direcionadas a adultos, que embora minoritárias, também foram doadas.

Luizane Guedes, uma das idealizadoras da “Invasão Literária” na Piedade, avalia a ação mais como um começo do que como uma atividade finalizada no ensolarado domingo. “Acredito que ela é o começo de uma longa jornada com as comunidades da cidade de Vitória. Uma jornada relacionada a auto- estima, negritude e empoderamento, especialmente de crianças e adolescentes negros”, afirma, enaltecendo a carinhosa receptividade da comunidade.

“Penso que, para além dos livros, precisamos pensar próximos passos, como espaços de leitura e contação de história dentro do território, assim como o fortalecimento das potencialidades dessas crianças, adolescentes e suas famílias”, avalia.

Sobre a Piedade, desde nossa última visita em 2019, realizado no período entre o prêmio conquistado pelo Instituto Raízes, representado pelo ativista social e cultural Jocelino Júnior, e o prêmio concedido a Sandra Reis, que é tia de Ruan e Damião Reis, jovens executados a tiros dentro da comunidade, aparentemente pouco mudou. Ainda há muitas casas vazias de famílias que fugiram dos conflitos do tráfico de drogas que vitimaram inocentes. Ainda existe medo e uma comunidade em que as pessoas têm receio de sair de casa, especialmente à noite.

Vitor Taveira

Mas ainda há muita fé. Em Deus e também na cultura, elemento fundamental na construção de comunidade. Apesar dos prêmios de direitos humanos concedidos pelo Estado, das visitas bem fotografadas de autoridades e das várias reuniões, os únicos possíveis espaços de lazer da comunidade pouco se alteraram. Ao lado do Instituto Raízes, entre os restos de uma construção, o terreno antes vazio ganhou um singelo parquinho de madeira, trazido por coletivos de palhaços que atuam no local. No outro espaço grande baldio, a terra deu lugar a cimento. E só. A promessa de uma pracinha ainda não se tornou realidade.

O Estado reconhece os problemas e a luta da comunidade por direitos, mas avança a passos lentos na hora de promover as transformações necessárias e demandadas por ela.


Uma ‘invasão literária’ no morro da Piedade

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Fotos: Vitor Taveira É mais fácil falar da presença do que dos vazios e silêncios. O medo ainda existe, embora passeie invi


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