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Parto natural: quando a liberdade e a segurança amparam a mulher que dá à luz

No Caparaó capixaba, o projeto de uma Casa de Parto ligada ao SUS tem sua gestação reiniciada

Arquivo pessoal

Entre as tantas realidades exacerbadas pela pandemia de Covid-19, a maior segurança do parto domiciliar em relação ao hospitalar foi uma delas. Contestações corporativas à parte, vindas especialmente dos conselhos federal e regionais de medicina, a percepção de doulas – mulheres que auxiliam emocionalmente as gestantes durante a gravidez e o parto – e parteiras no Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, é de que a opção por parir no conforto do lar foi feita por um número consideravelmente maior de mulheres nesses meses da pior crise sanitária mundial do século. 

Em agosto último, o Jornal da USP, produzido pela Universidade de São Paulo, mencionou que o parto domiciliar fez aumentar em 200% a busca por doulas e parteiras no território fluminense e em 100% no paulistano, segundo o grupo Commadre, de apoio à gestação.

Em solo capixaba, a jovem parteira Marinã Sales também sentiu um pequeno aumento da procura, que já vinha crescendo desde o ano anterior, com a diferença que agora o partejar não se restringe à sua região de moradia, no Caparaó, tendo sido necessário também viajar para outras cidades e estados para apoiar mulheres que escolheram parir em suas próprias casas.

Sozinha ou acompanhada das também jovens parteiras caparaoenses Joana Pinto e Marília Herdy e da doula Paloma Paz, Marinã tem atravessado a pandemia preenchendo seus dias ajudando a transformar em realidade a fé na natureza que pulsa na alma das mulheres que atende, presenciando milagres que iluminam a vida delas, de seus bebês, companheiros e familiares, e, igualmente, na sua própria.

Arquivo pessoal

“É transformador, é empoderador, vejo renascimentos mesmo, não só da mulher, mas do homem ao lado e toda a família. E nesses tempos de limpeza e purificação planetária, tudo ficou mais intenso. Os processos de nascimento estão trazendo muita cura. Pra mim também, a cada parto eu me transformo. É muito bonito, é um milagre. Eu choro toda vez”, relata. 

O trabalho não se restringe ao momento do parto, sendo feito durante toda a gestação. A orientação é para que a mulher faça um pré-natal paralelo, com consultas médicas e exames de praxe, cabendo à parteira, nesse período pré-parto, o “acompanhamento psicológico, energético e espiritual”, auxiliando a mulher a compreender a maternidade, como filha e como nova mãe, com uso de florais e outras terapias. “Quanto antes começar a se preparar, melhor”, aconselha. 

Em muitos momentos, Marinã denomina seu trabalho como um “partejar ancestral”, honrando a história secular das parteiras tradicionais do Brasil e de todos os cantos do planeta, muitas delas ainda vivas, mas que, por perseguições e criminalizações ao longo das últimas décadas, acabaram por encerrar essa era.
Arquivo pessoal

As novas parteiras sabem o tamanho da “briga” que compraram com o arcaico sistema obstétrico, principalmente o brasileiro, que colocou o país no topo do ranking de cesarianas. Mas elas seguem, munidas de muito amor, coragem, cursos e treinamentos diversos e de uma certeza visceral, que viram nascer junto com seus respectivos filhos, em extasiantes experiências de partos naturais domiciliares bem-sucedidos. 

No caso de Marinã, a realização se deu somente com seu segundo filho, nascido quatro anos após uma traumática cesárea em que deu à luz à sua primogênita. Desta vez, ao invés da cidade, o cenário foi uma casa no meio da floresta, na presença do marido e da doula, que acampou, literal e pacientemente no quintal, à espera do tempo natural do bebê. 

Redução das cesáreas

O ano era 2017, quando o Ministério da Saúde publicou o resultado de um estudo que mostrava uma redução inédita do percentual de cesarianas no país. “Pela primeira vez desde 2010, o número de cesarianas na rede pública e privada de saúde não cresceu no país”, noticiou a Agência Brasil à época.

A queda foi de apenas 1,5 ponto percentual em 2015, mantendo ainda o parto cirúrgico em primeiro lugar, com 55,5%. O SUS continuou tendo um percentual maior de partos vaginais (59,8%), estando ainda na conta do sistema suplementar (hospitais particulares) o peso maior da balança em favor das cirurgias cesarianas.

Mesmo pequena, a mudança foi comemorada pelo governo e seguida do anúncio de novas diretrizes de assistência ao parto normal, voltadas a profissionais de saúde e gestantes, com objetivo de permitir que “toda mulher [tenha] direito de definir o seu plano de parto, que trará informações como o local onde será feito, as orientações e os benefícios do parto normal”.

“Assim, o parto deixa de ser tratado como um conjunto de técnicas e representa momento fundamental entre mãe e filho”, declarou o Ministério da Saúde à ABr. A estabilização das cesarianas no país, explicou a pasta federal, “é consequência de medidas como a implementação da Rede Cegonha e investimentos em 15 centros de Parto Normal; a qualificação das maternidades de alto risco; a maior presença de enfermeiras obstétricas na cena do parto e a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar junto às operadoras de planos de saúde”.

Importante ressaltar que esse estudo ministerial compara apenas o parto vaginal e a cesariana, não detalhando qual percentual dos partos vaginais registrados foi normal (com os procedimentos médicos convencionais, muitas vezes geradores de violência obstétrica); ou humanizado (onde os procedimentos são realizados mediante consentimento e com foco no bem-estar da mulher); ou, muito menos, naturais (sem qualquer aplicação medicamentosa ou procedimento cirúrgico) ou domiciliares.

Novas diretrizes da OMS

Em 2018, o Caparaó de Marinã acolheu um verdadeiro boom de partos naturais domiciliares, protagonizados por moradoras locais e por mulheres que subiram ao vilarejo apenas para parir, em casas alugadas ou de amigos. No mesmo ano, o mundo recebeu, da Organização Mundial de Saúde (OMS), novas diretrizes para o parto.

Em 15 de fevereiro, a OMS publicou suas novas recomendações para o atendimento de mulheres grávidas saudáveis. O objetivo principal foi “reduzir intervenções médicas desnecessárias, nas quais recomenda que as equipes médicas e de enfermagem não interfiram no trabalho de parto de uma mulher de forma a acelerá-lo, a menos que existam riscos reais de complicações”, registrou o noticiário do Sistema Nacional de Saúde (SNS) de Portugal.

Arquivo pessoal

Na sua nova orientação, ressalta o governo português, a OMS estabelece, por exemplo, a eliminação da referência à dilatação cervical de um centímetro por hora e enfatiza que uma taxa de dilatação cervical mais lenta por si só não deve servir de indicação para acelerar o parto ou o nascimento. 

No total, o novo documento tem 56 recomendações sobre o que é necessário para o trabalho de parto e imediatamente após a mulher ter o bebê, incluindo o direito a ter um acompanhante à sua escolha durante o trabalho de parto e o respeito pelas opções e tomada de decisão da mulher na gestão da sua dor e nas posições escolhidas durante o trabalho de parto e ainda o respeito pelo seu desejo de um parto totalmente natural, até na fase de expulsão.

“A gravidez não é uma doença e o nascimento é um fenômeno normal, que se pode esperar que a mulher complete sem intervenção”, declarou, na época, Olufemi Oladapo, do Departamento de Saúde Reprodutiva da OMS.

Segurança

A odontóloga Nayara Rudeck cita a nova recomendação da OMS ao falar sobre sua opção pelo parto natural e domiciliar. “A OMS diz que o melhor lugar pra mulher parir é onde ela de fato se sente segura”, afirma. 
“Se você é uma gestante de risco habitual, por que não no lar? Nossa casa tem uma ecologia própria. Você tendo um conhecimento sobre sua condição geral de saúde, se não tem diabetes, pressão alta, se não tem maiores complicações, que podem levar para uma intercorrência médica, é possível, é seguro”, reitera. 
Arquivo pessoal

Sua escolha, salienta, foi resultado de sua experiência de vida. “Não foi pra negligenciar o que é saúde, o que é acompanhamento de saúde, muito pelo contrário. Eu segui um caminho pela segurança, segurança no meu instinto. Mas ao mesmo tempo que eu busquei conhecer o meu corpo, eu não me afastei das ferramentas que a medicina tem pra me oferecer”, explana, em consonância com um parecer emitido em 2019 pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) brasileiro, nos autos da Ação Civil Pública nº 0051041-07.2018.4.02.5101, impetrada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj). 

No documento, o Cofen afirma que o Parto Domiciliar Planejado (PDP), mesmo estando ainda à margem da legislação brasileira, “é um direito e uma opção perfeitamente segura e viável para as gestações de risco habitual” e classifica de deletéria a iniciativa do Cremerj, em querer “coibir o Enfermeiro do livre exercício de sua competência legal de realizar o parto natural sem distocia”. 

Nayara foi uma das mulheres assistidas por Marinã e Joana neste primeiro ano pandêmico. “Num contexto de pandemia, não me sentia segura pra ir a um hospital. Eu me senti segura no meu lar. Mas isso não é realidade pra todas as mulheres. A luta é que todas as mulheres tenham essa segurança em todos os espaços que ela necessite, no lar, no hospital”, argumenta.

“Aqui em Patrimônio da Penha senti essa firmeza de levar meu processo de forma espiritualista, um portal de conexão comigo mesma, com o amparo das mulheres que me acolheram e me supriram de cuidado. Senti isso aqui, independentemente das assimetrias de pensamento, do grande pluralismo cultural”, conta.

Mesmo num contexto social e comunitário tão favorável, os conflitos e dificuldades existem, mas, há algo muito maior que essas dificuldades, sublinha a odontóloga. “Existe a nossa ancestralidade, o nosso instinto, o que o nosso corpo diz para além das informações. Existe uma mística que ampara o parir, o gestar. Abre-se um portal de autoconhecimento e renascimento. Uma coisa de morte e ressurreição. A partir do momento que passa por essa experiência, você não é mais uma só, você se multiplica”, poetiza.

A potência do SUS
Defensora do SUS e concluindo uma especialização em Saúde Pública, Nayara aposta no nosso Sistema Único de Saúde como um porto seguro em potencial para favorecer o crescimento dos partos naturais, inspirando-se na experiência do Vale do Capão, na Chapada Diamantina, no sul da Bahia. “Lá [as doulas e parteiras locais], conseguiram romper as barreiras de comunicação e visão, pra garantir a saúde forma integral, com enfermeira e médico”, descreve. 

Barreiras que ela acredita serem possíveis de serem vencidas também no Espírito Santo, especialmente na montanha onde reside, sendo essencial, para isso, o “diálogo entre a saúde [institucional] e a comunidade”. “São coisas que estão iniciando no SUS, mas que já existem no conhecimento tradicional há muito tempo. Não são opostos, são integrativos, complementares”, concilia.

Esse diálogo honesto, salienta, é primordial pra garantir a equidade em saúde, o que implica em atender a uma infinidade de peculiaridades pessoais e regionais. “O SUS, que é universal, está preparado pra amparar as mulheres nas suas necessidades e cada uma tem necessidades diferentes, isso é equidade”, defende. 

Casa de Parto

Também defensora assídua do SUS, Vagna Araújo é doula há 30 anos, além de fundadora e atual presidente do Clube da Solidariedade Casa da Mulher, entidade que acolheu sua missão de doulagem nos últimos 17 anos, primeiro em Vila Velha e hoje no Caparaó. 
Casa da Mulher

Após um curso de doulas realizado na região – com apoio da ONG Fase, dos coletivos Doulando Vidas e Zalika e do comércio local, que doou alimentação e hospedagem para as instrutoras de outras cidades e estados – a Casa da Mulher chegou a receber a oferta de um imóvel na montanha para a instalação de uma casa de parto, mas o local não atendia às normativas do SUS.

“Eu acredito no SUS, quero fortalecer o SUS e criar uma casa de parto nos moldes do SUS. Uma das exigências é que esteja a 15 minutos de um hospital com CTI e UTI. Com a pandemia a gente adormeceu o projeto, mas agora estamos voltando com força total. Já estamos conversando com os municípios, vamos falar com os prefeitos eleitos, pra encontrar o melhor local, definir isso junto com os grupos de mulheres, de parteiras e de doulas”, informa.

O objetivo é “abrir casa de parto legalizada e respeitada como há em outros lugares do país”, assevera, referindo-se aos vizinhos Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia. E depois do Caparaó, quem sabe outras regiões capixabas também se animem? “Que maravilha seria cada município ter uma casa de parto”, roga, sonhando acordada. 

E por falar em sonho, o de Marinã é que todas as mulheres tenham o direito de escolher como, onde e na presença de quem querem parir os bebês da nova era, pós-pandêmica. “É o sonho! Quem sabe?! Eu acho que caminhamos a passos largos pra isso. As mulheres estão despertando”, profetiza.

Casa da Mulher

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