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Juntando os pedaços

O mapa existencial de um ser humano é formado pela adição de outros seres humanos …

Dentre as manias que eu tenho, uma é o quebra-cabeças. Designação injusta para um passatempo tão singelo, visto que ele nada quebra e, muito pelo contrário, fortalece e estimula, como uma fisioterapia para o cérebro. Mais uns anos e teremos academias cerebrais em cada esquina, onde as pessoas poderão passar algumas horas aprimorando a massa cinzenta. Mens sana in corpore sano, disse o romano Juvenal, e não falava de diploma universitário.

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Juntar minúsculas pecinhas enigmáticas para alcançar um objetivo é um exercício de concentração e paciência que estimula todos os sentidos – visão e tato, claro, mas também olfato, paladar e audição. Quando totalmente absorvida no nobre ofício de inserir uma peça em seu devido escaninho – que só a ela pertence – e se revela uma roseira se debruçando sobre um lago tranquilo, posso captar o perfume da rosa impregnando a paisagem fictícia. Se acaso uma garrafa de vinho está sobre a mesa, dá para sentir o sabor do líquido agridoce umedecendo os lábios…
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Quanto à audição, o suave clique da pecinha encaixando em sua moldura soa como música aos ouvidos atentos. Unir minúsculas peças seguindo um traçado invisível e pré-estabelecido é como desvendar aos poucos o mapa cifrado de um tesouro oculto. É como criar um mundo paralelo ligando estilhaços de tempo – segundos que se somam em minutos e se multiplicam em horas e anos – cada um com seu esboço emblemático: instantes bons ou ruins, alegres ou tristes, enfadonhos ou relevantes – todos se completando para recuperar o tempo vivido, passado mas não descartado, enriquecendo a alma e se transmutando em novas experiências. E de repente, Voilá! – a paisagem se completa.
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No entanto, não ressuscitamos sozinhos o tempo perdido. O mapa existencial de um ser humano é formado pela adição de outros seres humanos – todos que com ele conviveram e de alguma forma interagiram. Como os persistentes catadores que rondam as praias juntando conchas para tecer um colar, vou também recolhendo aqui e ali a carga emocional das pessoas que passam por mim – e eu por elas, deixando peças esparsas para compor minha paisagem pessoal. Quão monótona seria essa paisagem sem a contribuição de outras experiências!
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Cora Coralina, em Sou feita de retalhos: “Pedacinhos coloridos que passam por mim e vou costurando na alma”. Adélia Prado em Cacos para um vitral: “É preciso paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas, enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos.” Com cacos e retalhos a vida vai sendo composta, como as peças de um quebra-cabeças que levamos a vida toda montando. É do risco do lápis que se materializa a escrita. Não há pressa, no final o filme acaba, fecha-se o livro, o sol se esconde, o pirulito fica só um pauzinho sem sabor. Mas de tudo isso alguma coisa fica: é desses pequenos nadas que se compõe a vida.

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