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Desafios dos séculos XIX e XX persistem no Brasil, avalia doutor em Educação

Palestrante no CE/Ufes, Daniel Cara vê o Espírito Santo seguir o padrão da gestão sem diálogo com educadores

Divulgação

Nesta segunda década do século XXI, o Brasil, no conjunto de suas unidades federativas, ainda tem desafios dos séculos XIX (universalização da educação básica) e XX (qualidade da educação) para vencer: não universalizou a educação básica e mantém estruturas precárias de ensino e nível baixo de aprendizado, com desvalorização constante do magistério.

A análise é do doutor em Educação Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, vencedor do Prêmio Darcy Ribeiro em 2015, concedido pela Câmara dos Deputados em nome do Congresso Nacional. Uma das maiores referência na pesquisa e luta pelo direito à educação básica pública de qualidade no país, Daniel será o palestrante da aula inaugural do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) na próxima terça-feira (9), às 19h, com o tema “Educação e Cidadania: o papel das educadoras e dos educadores”.

A raiz do problema da falta de acesso e qualidade, afirma o especialista, é estrutural: o fato da gestão das políticas educacionais ser feita por leigos. Via de regra no Brasil, aponta, “as políticas educacionais não são geridas por pessoas que conhecem a educação básica pública; são pessoas leigas”. Por isso, a solução do problema passa também por uma transformação estrutural. “É a radicalização, colocar a ciência pedagógica como fio condutor. A gestão da educação tem que ser feita por educadores que conheçam a educação básica pública e não por leigos”.

A Constituição Federal, ressalta o doutor em Educação, traz, como incumbência dos educadores, a formação dos educandos para a cidadania. “A gente precisa ter clareza disso no Brasil. E há um outro aspecto, que é a cidadania dos educadores: o fato de que os educadores precisam reivindicar a gestão da educação. Porque a educação gerida pelos leigos, que é a esmagadora maioria dos gestores públicos no país, tem demonstrado que não funciona”, expõe.

Pandemia da falta de diálogo

A pandemia da Covid-19, observa Daniel, tem sido esclarecedora sobre as incoerências e disparates que minam a boa Educação. O discurso de que as políticas de saúde devem ser pautadas na ciência já é aceito, sendo necessário ainda estabelecer que, “em Educação, as políticas públicas também devem ser pautadas pela ciência, mas ela é excluída do debate. É preciso ter a coragem de realizar um trabalho pedagógico pautado na ciência pedagógica”, conclama.

O mais grave é que, além da falta de especialistas e de suporte científico na gestão, as políticas ainda são executadas sem diálogo com o magistério. O caso do Espírito Santo, ressalta Daniel, “é paradigmático”, em que “o governo decidiu voltar às aulas sem qualquer diálogo com os professores”.

Daniel sublinha que, na semana em que a determinação do Estado começa a valer – a rede estadual retoma as aulas no sistema híbrido nesta quinta-feira (4) – a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, anuncia que as escolas irão permanecer fechadas, com as famílias recebendo um auxílio mensal para ajudar a cuidar e educar os filhos em casa. O objetivo, claro, é conter a transmissão do novo coronavírus (SARS-CoV-2), cujas novas variantes, já identificadas também no Brasil, estão ainda mais agressivas. “Concretamente, não é o momento para o retorno, mas os gestores insistem na reabertura das escolas, contrariando a ciência”.

Governo do Estado anuncia investimentos para retorno às aulas presenciais. Foto: Secom/ES

Emblemático para entender o motivo do fracasso do modelo de gestão adotado no Brasil, o Espírito Santo também é arauto da solução inevitável, compara Daniel. O desafio do século XXI é implementar, na educação contemporânea, “o aprendizado com significado, capaz de fazer com que os países ingressem na era da inovação e conhecimento”.

A luz que vem do campo

Significado. Uma aprendizagem que faça sentido para educadores e educandos, que dialogue com sua realidade. A descrição remeta imediatamente a um dos pilares da Pedagogia da Alternância, metodologia criada na França e trazida em 1968 para o Brasil por meio de frades jesuítas que instalaram no Espírito Santo o Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (Mepes). Durante esse meio século de crescimento, a Pedagogia da Alternância foi sendo cada vez mais reconhecida como a metodologia mais adequada para a Educação do Campo por educadores da área em todo o Brasil.

Da parte do Mepes, as Escolas Família Agrícola (EFAs), de ensino fundamental e médio, estão presentes em 17 municípios, mantendo sua característica de “instituições comunitárias de caráter público não estatal”.

Há ainda centenas de escolas do campo integradas às redes públicas municipais e estadual, com parte importante implementando a Pedagogia da Alternância, principalmente nas que dialogam com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e com a Regional das Associações dos Centros Familiares de Formação em Alternância do Espírito Santo (Raceffaes).

Mepes

O exercício da cidadania por parte dos educadores, além de ter o dever de formar os estudantes para tal, também tem o dever de buscar novas soluções pedagógicas, permitindo “a experiência significativa como parte do processo pedagógico” reitera Daniel Cara. “Nesse sentido, o campo está muito mais avançado e profundo do que nas regiões urbanas”, afirma, celebrando o fato de que o financiamento da Pedagogia da Alternância foi mantido na aprovação da regulamentação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

“Foi uma luta, uma resistência muito grande do Congresso para manter o financiamento da Pedagogia da Alternância”, relata. O motivo principal? Além da tentativa de minar mesmo qualquer tipo de pedagogia que emancipe o educador e o educando, essa resistência específica se deu em função de “movimento sociais como o MST, que advogaram em favor da questão, o que virou uma disputa de base meramente ideológica [de ruralistas e do agronegócio contra a agricultura familiar e a agroecologia]”.

Nesse ponto, da emancipação, Daniel invoca Paulo Freire, não havendo como não citá-lo quando se aborda o assunto. “Todo o trabalho pedagógico que foge da perspectiva de simplesmente formar pessoas para uma situação de dominação, pessoas que são submetidas a uma lógica dominante, acabam tendo resistência. Escola sem partido é uma prova disso”, diz.

Educação emancipadora

A verdade, ressalta, é que qualquer trabalho feito sob a perspectiva da educação como direito, considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e a Constituição Federal brasileira , “não existe outra perspectiva pedagógica que não a formação crítica, de emancipação”. Por isso, “a resistência a Paulo Freire é a outras pensadoras e pensadores, como Nydia González, é a prova de que o trabalho pedagógico pautado num pensamento pedagógico substantivo gera emancipação de mulheres e homens, o que gera resistência aos órgãos de poder”.

As secretarias de educação, em âmbitos estaduais e municipais, no Brasil, na América do Sul e em boa parte do Ocidente, avalia o dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, “não fazem uma formação emancipadora”, sendo padronizada pelos parâmetros determinados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que “não se preocupa com a formação de cidadãos, mas em construir uma educação a serviço da economia”, classifica.

O problema, aponta, “é que se esses parâmetros permanecerem, a gente não vai conseguir avançar, porque eles não cabem para o Brasil, pra América do Sul. Eles cabem para os países asiáticos que lideram o processo de industrialização no mundo, mas mesmo eles se sentem pressionados a mudar o sistema de ensino, porque ele é acriativo, forma pessoas para responderem bem uma prova, realizar bem uma tarefa, mas não para desenvolverem a capacidade criadora”.

A participação das famílias na gestão das escolas é outro ponto crucial, salienta Daniel. “O preceito fundamental da gestão pedagógica é a gestão democrática. E a ausência da participação das famílias gera uma situação terrível de inadequação das soluções educacionais”. Novamente, ponto para a Pedagogia da Alternância, onde as famílias participam efetivamente da gestão escolas e das atividades escolares de seus filhos, por meio metodologias específicas, como o Tempo Comunidade, o Caderno de Realidade, e outros instrumentos, que foram essenciais para garantir um ensino remoto durante a pandemia menos sofrível, já que a autonomia do estudante e a participação dos cuidadores no processo de educação já era uma realidade cotidiana.

“Quando falamos de inovação do conhecimento e pensamento crítico, falamos de uma nova pedagogia. E a Pedagogia da Alternância, no campo, tem sido mais inovadora do que o que de melhor se faz na educação urbana”, salienta Daniel Cara, lançando luzes sobre um caminho já aberto no Brasil, a partir do Espírito Santo, e que merece ser melhor conhecido, fortalecido e difundido, para que os princípios constitucionais da Educação sejam alcançados.

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