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‘Sou meio teimosa, sabe, insistente. A gente sempre trabalhou com orgânico’

Dona Didi, uma das rainhas da Agroecologia capixaba, e a sua boa teimosia em sempre rejeitar os agrotóxicos

Arquivo pessoal

“Eu sou meio teimosa, sabe. Eu sou insistente”, brinca, entre risadas, dona Edite França Barbosa, a Dona Didi, umas das rainhas da Agroecologia capixaba, em Pinheiros, extremo norte do Estado.

Do alto dos seus 76 anos bem vividos “na roça”, Dona Didi conta com orgulho que “nunca trabalhou com ‘química”, diz, usando de eufemismo, gentileza camponesa, para se referir ao veneno agrícola-agrotóxico-pesticida-biocida.

“Eu acho uma covardia a gente ter um pedaço de terra e ter de comprar tudo fora e comer mais veneno que comida”, declara. “Se a gente partir pra comprar na cidade…Tudo o que compra na cidade tem veneno! Porque quando você vê uma fruta que a gente tem costume de colher com três a quatro meses aqui e eles conseguem com 30 dias, com 45 dias…”, explica, comparando o tempo da vida com o tempo do veneno e do mercado insustentável.


“Sou filha de trabalhador rural. Meus pais eram trabalhadores rurais. A minha família, a gente cria os filhos nessa cultura. Planto meu próprio milho, meu feijão… tudo orgânico, com esterco. Batata doce, alface, couve, pepino, pimentão, cenoura, inhame comum, inhame ‘macaquinho’…”, relata, com uma entonação dançada, que a repórter simboliza com as reticências. “Agora tem uma cama de galinha, fiz um teste e não deu certo, queimou minhas alfaces, cenoura não deu, milho ficou pequeno. Fomos até de esterco de gado”, conta.
Arquivo pessoal

Nesse fevereiro – ainda pandêmico – Dona Didi vai alugar um trator. Estima em duzentos reais a hora. “A gente planta pouco, porque não tem condição de pagar hora de trator, então trabalha no cultivo das covas, adubo de boi”, explica. Mas, vez em quando, um trator vai muito bem, para poder “plantar mais”.

Ora narrando com o verbo no singular, ora no plural, Dona Didi menciona a família recorrentemente. A agricultura camponesa é assim: trabalho e família sempre juntos, um sustentando o outro.

“Eu faço mutirão, a família é grande, só a família já limpa tudo”, conta, orgulhosa. “Quando chamo mutirão, mato dois frangos, um porco… vem todo mundo, com enxadinha nas costas, e vem! Geralmente faço no sábado. Pra colher o feijão, o milho”, descreve. “Os filhos são casados, mas graças a Deus são obedientes, só pedir que vem pra ajudar”, sorri.

São em seis os filhos biológicos, mais três que ela criou, nascidos de outros ventres. Estudaram em escola agrícola, afirma, agradecida. “Metade é técnico agrícola”, diz. Netos são 17 e bisnetos são dois. “Se Deus quiser, Deus me dar vida, vou continuar com minha lavoura, minha rocinha. Tem gente que fala: por que faz isso, não tá muita velha? Mas é que tem que deixar uma aprendizagem pros filhos, né”, roga.

O marido, saudoso, foi retirado do convívio da família na década de 1990. Era sindicalista, militante da “luta por alimento, casa, moradia, terra pra todos, comida farta na mesa”, narra. Valício Barbosa dos Santos, o Leo, foi assassinado na luta sindical. Mas a tragédia não retirou da viúva o reconhecimento sobre a honra e o valor da luta empreendida. “É um órgão competente que todo mundo tem que ter pra reivindicar seus direitos. Se não tiver um sindicato, uma associação pra representar a gente que é pobre, não tem nada na vida”, pondera. Os governos, via de regra, observa, “não ajudam ninguém com nada. A gente procura um meio de viver com a própria vida”, confessa.

Arquivo pessoal

Exceções? Claro! E a extensão agrícola é bem lembrada como a melhor nesse sem fim de abandono e, pode-se mesmo dizer, de opressão, já que a famigerada Revolução Verde foi disseminada pelos braços capilarizados dos órgãos de governo que divulgavam, recomendavam e financiavam a introdução de agrotóxicos nas lavouras até então naturalmente agroecológicas; e ainda o fazem, em grande medida, bastando comparar os orçamentos/incentivos fiscais anuais para o agronegócio, a agricultura familiar e a agroecologia.

O Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural (Incaper) de Pedro Canário, noroeste do Estado, personifica essa feliz exceção. Recentemente, levou-lhe mais sementes de milho crioulo. “Eu já tinha um pouco de semente incentivada por meus pais. Aí o Incaper veio. Luís Sacramento veio ajudar a gente, incentivar a gente com crioulo”. A oferta foi tamanha que ela pôde compartilhar, doar um tanto para os vizinhos, já que não ia “dar conta de plantar tudo”.

Os extensionistas também são “obedientes”, brinca. “A gente faz mutirão, convida, eles vêm”. E foram os obedientes extensionistas que chamaram atenção da repórter para a história de Dona Didi. Nem tanto a matéria publicada no site do Incaper, com foto dela ao lado dos técnicos, com uma garrafa de sementes de milho crioulo nas mãos. Foi mais o alvoroço que a imagem da dama da Agroecologia em Pedro Canário suscitou em meio aos camponeses e técnicos da agricultura orgânica capixaba. “A extensão rural deveria se render a ela”, disse um. “Dona Didi nos ensinando sempre, mesmo após o assassinato do esposo, defensor da causa camponesa”, mencionou outro.

Reproduzo alguns dos lisonjeiros colhido no ambiente virtual das redes sociais. Dona Didi é só gratidão. “Graças a Deus, Deus é tão bom pra mim, que o pouco que eu planto eu divido com os vizinhos, com outros agricultores. O Incaper aprende com a gente um pouco da agricultura familiar”, admite.

Arquivo pessoal

Além de alimentar a família e compartilhar com os vizinhos, a produção tem um excedente que é comercializado. Houve o tempo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal, mas começaram a atrasar o pagamento ou não pagar todo o contratado. “Oito meses sem receber? Dinheiro no banco só cobrando juro? Já que não tem um administrador bom, então eu parei”, resume.

A venda acontece mesmo é na feira que faz quinzenalmente, em Floresta do Sul, local do assassinato do Leo, perto a Dois de Julho, onde ela vive. Na barraca, “feijão-de-corda, batata-doce, inhame, milho verde, beiju, biscoito, pão, verduras, goma fresca, goma seca…” e as reticências.

Ao final da conversa, Dona Didi diz que tem “uma lamentação pra fazer”. Plantaram eucalipto, reclama, “as nascentes dos córregos estão secando”, lamenta. Na sua propriedade não tem nascente, mas o curso do córrego Santo Antônio que passa por suas terras é protegido pelo reflorestamento da mata ciliar. Ele segue depois para o córrego Engano e segue até chegar no Itaúnas, atravessando a bacia hidrográfica mais desmatada do Espírito Santo, menos de 10% de cobertura florestal, segundo o plano da bacia, concluído pouco antes da pandemia eclodir, o que já gerou elaboração de projetos para “reesverdear” o território.

“Na beira do meu córrego tá todo reflorestado. Nos fundos da minha terra onde eu não pude plantar que é ladeirado de pedra, eu fiz reflorestamento. São seis hectares e meio de reflorestamento, por isso que não falta água”, descreve. Mas, acima e abaixo, as nascentes secam e os córregos afinam, alguns desaparecem também. O maior vilão, visto a olhos nus, o deserto verde resultante dos monocultivos de eucalipto, em contínua expansão, o uso do solo que mais cresce no Espírito Santo, como apontam dados oficiais do Atlas da Mata Atlântica.

Filha de trabalhador rural, viúva de trabalhador rural sindicalista, mãe de técnicos agrícolas e agricultores de mutirões-familiares-enxadinha-nas-costas, Dona Didi acrescenta, à tão afetiva esfera familiar, o agradecimento ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), outra família, ou simplesmente, família também, expandida, ligada por outros fluidos que não o sanguíneo, mas de sintonia de pensamento, de ação e de sonhos.

“O MPA pra mim foi uma riqueza que veio pra nós, que tanto nos ajudou a conscientizar a não vender o sítio, a fazer reflorestamento, pedir Luz para Todos, casa, moradia pra todos nós, que a gente não tinha casa pra morar, quando formava chuva no céu cobria tudo com lona”, narra. “Eu tenho minha casa do MPA, dou graças a Deus, todo santo dia, pela força que a gente tem pra lutar para outras pessoas também. Só aqui pra Dois de Julho conseguimos sete casas, graças a Deus, tudo através de luta. O Eleandro, a Soraia, o Dorizete, o Elias… e seguem as reticências de afeto e gratidão, a dança da gentileza, da sabedoria e da simplicidade camponesa. 

Arquivo pessoal

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