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Vida e outros interesses

A proteção à vida deve ser o interesse prioritário

O povo brasileiro assiste, estarrecido e suficientemente inerte, sua própria destruição articulada pelas autoridades públicas. Evento que tem acontecido a todo momento em que o interesse maior é confrontado.

Para ilustrar essa visão, vou começar com a Saúde.

O enfrentamento da pandemia do novo coronavírus foi menosprezado pelo governo federal desde as primeiras horas, quando o presidente Jair Bolsonaro instituiu as expressões “gripezinha”, “resfriadinho” e sentenciou que os brasileiros deveriam enfrentá-lo “como homens”. Na velha expressão machista, que lhe é peculiar, tentou significar que não deveríamos “ficar em casa”.

Além disso, promoveu um show de horrores, não utilizando da prevenção e até contaminando seus pares em aglomerações. Depois, passou a defender interesses escusos incentivando o uso de “tratamento preventivo”, o que influenciou as pessoas em geral. Somado a isso, facilitou a dispensa desses medicamentos, sem eficácia comprovada, no serviço público de saúde e muitos brasileiros embarcaram, passando a se acharem protegidos e, naturalmente, relaxando a prevenção, que já eram incentivados a não fazerem. Por fim, tem tratado a aquisição da vacina com desdém, enquanto os números de internações e mortes se mantêm em patamares altíssimos, quase 250 mil mortes em meados de fevereiro de 2021.

Se conseguíssemos um cálculo matemático da porcentagem desse número de mortos que foi causada por todas essas atitudes elencadas, certamente teríamos um caso de crime de genocídio.

Agora quero explicitar a questão da Segurança Pública.

Desde a eleição esse governo preconizava a violência, justificava a violência do Estado e dividia a população entre “bons” e “maus” dentro de seus juízos de valores, historicamente questionados, desde o afastamento do presidente de suas funções no Exército brasileiro até seu envolvimento com milicianos e a parte podre dos evangélicos.

Diante dessa postura no alto comando, “aqui embaixo” as coisas pioraram muito, principalmente nas abordagens policiais, majoritariamente aos pretos pobres de periferia, estereotipados como violentos para justificar a violência policial, chegando a propor uma legislação que venha a blindar os agentes da segurança pública na prática da violência com a população.

Além disso, trabalha o convencimento da população para adquirir armas, justificando o fracasso do Estado em sua defesa e permitindo que ela mesma faça a justiça.

Fica muito claro a postura do governo no sentido de defender o interesse da indústria bélica e jogar a sociedade numa convulsão, alimentada pela violência, impunidade e dominação do mais forte e, novamente, precisaremos de bons calculadores para a identificação dos números da violência derivados dessa postura e adicioná-los ao genocídio.

Poderíamos ainda elencar vários outros episódios irresponsáveis, como o aparelhamento da educação para o mercado de exploração de mão de obra e a utilização da coisa pública como moeda de negociação de apoio político, ou ainda o ataque às instituições garantidoras da democracia, etc., etc. e etc.

Enfim, atitudes que, se investigadas e tendo seus dados elaborados, trariam muito mais números para esse genocídio, mas vou agora ao mais importante de todos.

A Cultura.

A princípio pode parecer ao leitor um contrassenso colocar os prejuízos à Cultura como mais importante até que as mortes, mas peço um pouco de paciência para me fazer entender.

A Cultura reflete o espírito de um povo, é o que Ele tem de originalmente seu, não nasce em gabinetes e está em todos os lugares. Quando o Estado interfere na Cultura, de qualquer forma que não seja o incentivo, ele foge de seu papel de servir ao povo e passa a tentar modificá-lo para o que entende como modelo ideal, ou seja: toma posse desse povo.

Se prestarmos atenção no que foi listado como interferência na Saúde e Segurança, veremos que as atitudes miravam a Cultura, formas de modificar o “phatos social”, o nosso entendimento da vida, das relações, valores etc. Tenta dissuadir o povo de suas responsabilidades na convivência social, principalmente frente às diferenças de comportamento, as visões diferenciadas de mundo e às condições objetivas que levam aos conflitos. A sociedade tem em si mesma a ética da convivência e depende do Estado para dirimir conflitos e não doutrinar seu comportamento.

Esse “pathos social” conscientizou a população da necessidade de vacina, chegando a erradicar várias doenças, enquanto o Estado se prestava às campanhas de conscientização. Também podemos verificá-lo exatamente nas diferentes visões para os problemas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que temos uma parcela que entende que “bandido bom é bandido morto”, tem outra que entende a necessidade de buscar as causas sociais da violência, intervir no sentido de oferecer possibilidades de ressocialização e outras oportunidades que não o crime.

Assim, me baseio em Friedrich Nietzsche, em sua obra basilar “O crepúsculo dos ídolos”, mais especificamente no capítulo “O que os alemães estão perdendo”, para entendermos melhor a importância da cultura livre das amarras do Estado na construção do “pathos social”.

Só o povo pode se defender das tentativas de modelação de seu comportamento, seja para construir uma sociedade modelada e útil (a quem?) ou defender interesses escusos, defendendo a vida e a dignidade para além de modismos ocasionais ou ocasionados.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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