Professora de Educação do Campo na Ufes, Debora Amaral lança livro sobre as mulheres da Reforma Agrária na Educação
Um curso superior impulsiona muito mais do que a vida profissional das mulheres de acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária, abre horizontes e as fortalece em suas conquistas pessoais, como mulheres e cidadãs. O fenômeno foi fortemente constatado pela então doutoranda em Educação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Débora Amaral, ao acompanhar a trajetória de sete mulheres formadas no curso de Pedagogia da Terra na universidade paulista, e é bem retratado no livro que ela acaba de lançar As mulheres da Reforma Agrária na Educação.
Concluída em 2014, o convite para publicar a tese partiu da editora Appris em 2015 e, desde então, o livro vem sendo efetivamente gestado. Mas quando olha para a sua trajetória acadêmica, Débora reconhece que o prelúdio da gestão antecede mais dez anos, em 2005, ano em que, concluindo a graduação em Pedagogia, fez estágio de um ano em uma escola de assentamento da Reforma Agrária em Araraquara, também interior paulista.
“Isso mudou radicalmente a minha visão de escola e educação. Foi uma experiência maravilhosa, poder entrar em contato com pessoas que me ensinaram muito a beleza da luta. De 2005 pra cá, eu abracei a educação do campo como a minha vida”, declarou, durante o lançamento virtual da obra, nessa segunda-feira (8), Dia Internacional da Mulher.
Os cursos de Pedagogia da Terra, explica, não são institucionalizados, acontecem por meio de projetos apresentados pelas universidades. Formada aquela turma, o curso encerra. E formam professores pra atuarem no primeiro segmento, do primeiro ao quinto ano.
De que forma os cursos de graduação, seja de Pedagogia da Terra ou de Licenciatura em Educação do Campo (Ledoc), colaboram com a melhoria da qualidade da Educação no meio rural? Que lacuna eles preenchem? E que resultados têm sido alcançados?
A ideia do Ledoc é oferecer uma formação específica para quem quer atuar no campo. Em 2012, quando a Ufes lançou o edital, havia um número significativo de professores atuando no campo sem formação. No quadro docente das escolas localizadas em perímetro rural, em 2012, temos registro de 6.251 professores, sendo 1.094 da rede estadual, 5.008 da rede municipal e 149 atuando nas Escolas Família Agrícola (EFAs). Das 1.146 escolas municipais, 19 são Escolas Comunitárias Rurais (ECORs), onde atuavam 204 professores. Desse total, 5.831 professores eram licenciados, porém, 23% não possuíam licenciatura na sua área de atuação. O que é mais preocupante, no entanto, é a existência de 416 funções docentes exercidas por professores que tinham apenas o Ensino Médio completo e quatro professores que possuíam o Ensino Fundamental completo. Nesse contexto, 30% dos professores que lecionavam nas escolas públicas capixabas em zonas rurais, que possuíam Ensino Médio completo, concluíram o curso de magistério nesse nível de ensino. A gente não tem essa atualização, quantos desses profissionais conseguimos alcançar, mas sabemos que muitas professoras formadas em Pedagogia, que não tinham formação e atuavam no Fundamental 2, fizeram o curso pra se habilitarem e atuarem no Fundamental 2 e Médio.
Por que há tanta escassez de professores com a devida formação para atuarem no campo?
O campo ainda é visto como um lugar de atraso, onde tudo falta, é precário, o acesso é difícil. E a gente sabe que tem pouco investimento nas escolas do campo. A precarização ainda é muito grande. Tem a questão salarial, também. Apesar de receberem um adicional, ele não é suficiente para os gastos, por exemplo, com transporte, gasolina, desgaste do carro por causa das estradas ruins. Os professores não têm auxílio transporte, não podem pegar o mesmo ônibus que leva os alunos pra escola.
Qual é o impacto positivo da entrada das mulheres camponesas nas universidades, seja na vida de cada uma delas, seja na própria dinâmica acadêmica brasileira?
A princípio eu queria observar o significado que o curso de Pedagogia da Terra trazia pra vida profissional dessas mulheres. E durante a pesquisa, identifiquei que o curso não trazia apenas impacto nesse aspecto, mas também, fortemente, para vida pessoal delas. Apareciam constantemente falas sobre como, durante os quatro anos de graduação, elas tinham conseguido desenvolver uma consciência crítica em relação a vários aspectos, como reforma agrária, agronegócio e em relação à própria condição de ser camponesa no Brasil. Mas fortemente apareciam também falas de mulheres se reconhecendo enquanto mulheres oprimidas que vivem numa sociedade patriarcal, machista. E o curso, por ter uma forte discussão política, fazia com que essas mulheres passassem a se enxergar como pessoas que poderiam dar outro rumo pra vida delas. Era muito comum as mulheres falarem que quando chegavam no curso não percebiam o quanto eram oprimidas dentro de casa.
Um relato que me marcou muito foi de uma militante do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] que dizia que tanto ela quanto o companheiro eram militantes do movimento e o companheiro sempre saía para marchas em outras cidades, para ocupações e manifestações, e ela ficava em casa cuidando das crianças e da casa, da roça, do lote, da plantação. E, às vezes, o companheiro saía e ficava uma semana, quinze dias, e até meses fora. Quando voltava, tudo bem, a vida seguia. E ela disse que uma vez ela foi pra luta, para uma marcha, e passou alguns dias fora de casa. A dinâmica, na cabeça dela, seria a mesma, então ela foi e deixou a criança com o companheiro. Só que diferentemente, quando ela retornou, o marido havia abandonado a casa e as crianças estavam com a avó.
Isso fala muita coisa pra gente. O homem pode sair pra luta, que quando ele volta está tudo bem, a casa está lá, os filhos estão lá, a comida está lá. E a mulher quando sai pra participar da vida política, ela não tem a garantia de retornar para sua casa e continuar a sua vida como anteriormente. Isso grita pra gente, como a mulher ainda está subjugada a viver num ambiente privado, enquanto o homem tudo bem ir para a vida pública, se manifestar e procurar seus direitos. Então essas mulheres, ao entrarem para a universidade, ter contato com teorias, outros saberes, dialogando com os saberes que elas trazem para os assentamentos, vão ganhando uma criticidade em relação ao seu papel na sociedade, o que é ser mulher nessa sociedade. Apareceram muitos relatos durante a pesquisa de mulheres que durante a graduação se separaram, ao passarem a se enxergar como mulher que sofre violência dentro de casa, e não só uma violência física, mas uma violência psicológica, patrimonial. Então, essas mulheres adentrando o universo do curso de Pedagogia da Terra, têm possibilidade de entrar em contato com uma pedagogia crítica, que busca romper com o que está naturalizado na sociedade.
Acho que é o impacto principal: elas conseguirem se enxergar enquanto sujeitos de direitos e tentar romper com algumas coisas que estavam até então cristalizadas na vida delas. Isso eu vi acontecer com muitas meninas e muitas mulheres. Eu enxergo e elas dizem que o curso trouxe muito isso pra elas, trazer a vida delas para as mãos delas. Elas passaram a cuidar das próprias vidas.
Há vários exemplos no Brasil de mobilização de mulheres camponesas, como a Marcha das Margaridas e a Via Campesina, este internacional. Mas a luta social no campo ainda é associada a uma militância mais masculina. Como você enxerga a organização política das mulheres camponesas brasileiras hoje? É um espaço à parte no universo dos movimentos sociais do campo ou a atuação feminina se dá, na prática, de forma mais equânime, mesmo que a sociedade ainda não enxergue assim?
Eu acho que, sim, tem aumentado muito a participação das mulheres nas manifestações, inclusive organizadas por elas. Podemos citar o 8 de Março, que é organizando mundialmente e a cada ano a gente vê que aumenta. Se não me engano, é uma das maiores manifestações populares dos últimos anos, e em especial as mulheres campesinas estão nessas organizações. A gente vê fortemente a presença das mulheres numa das grandes manifestações que temos, a Marcha das Margaridas. A Via Campesina é liderada por mulheres.
Eu acredito que isso tem mudado. A gente vê muito mais a presença femininas nas ruas hoje do que há uma década, isso com certeza. Ainda não é um espaço que pode ser enxergado como fácil para a presença das mulheres. Não é. Ainda vivemos numa sociedade que diz que a mulher tem que estar dentro de casa e o homem pode estar onde ele quiser. Então eu enxergo a participação e organização das mulheres nas ruas e manifestações como ascendentes de uns anos pra cá.
A Portaria 981/2003, do Governo Lula, que estabelece para o casal e não apenas para o homem, a titulação da terra nos processos de Reforma Agrária, foi uma conquista importante para a mulher camponesa. Certamente fruto, naquela época, da luta empreendida até então. De lá pra cá, houve outras conquistas tão importantes?
É difícil falar de conquistas femininas após o golpe contra uma presidenta eleita. Complicado demais. Nós tivemos no período de 2003 a 2016, nos governos Lula e Dilma, muitas vitórias no campo de políticas públicas e para a luta feminina. Tivemos em relação ao PAA – Programa de Aquisição de Alimentos em 2003, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), em 2009, em relação à moradia e titulação da terra, mas foi tudo nesse período de 2003 a 2016.
O movimento de mulheres camponesas sempre esteve firme na luta em defesa dos direitos das mulheres, mas sabemos que depois de 2016 as coisas retrocederam muito. Tanto que temos um dado que diz: desde 2018, quase 500 mulheres sofreram algum tipo de violência em conflitos agrários. Desde 2008 não tinha um dado tão alto em relação a casos de tortura, agressão, assassinato, intimidação e outros tipos de violência. Então é difícil falar em conquistas importantes fora desse período de 2003 a 2016. O que a gente vê são movimentos de resistência dessas mulheres. Agora um fato importante fora desse período, não consigo pontuar, principalmente no atual governo, só retrocesso.
O machismo e o acúmulo de tarefas também é uma realidade nos lares rurais. Mulheres que militam precisam conciliar a luta social com os afazeres domésticos e o cuidado dos filhos, diferentemente dos homens que, quando optam pela militância social, podem contar com as esposas que cuidam do lar. Essa desigualdade está mudando? O acesso ao ensino superior tem ajudado nesse processo?
Sim, o processo de desigualdade está mudando, mas ainda longe de estar bom. Ainda está péssimo para nós, mulheres. E para mulheres pobres, negras, campesinas e periféricas, pior ainda. Acredito que o acesso ao ensino superior tem possibilitado um processo de transformação na vida dessas mulheres, principalmente um curso que se propõe a discutir questões de gênero, de direito, de acesso e permanência no ensino superior, que foi negado a vida toda pra classe popular. Isso possibilita um processo de conscientização.
As mulheres, ao longo da graduação, vão se conscientizando e se libertando desse modelo opressor. Não que a opressão deixe de existir. Mas ao saber que está sendo oprimida, ela pode criar possibilidades para se libertar. O acesso à universidade possibilita esse tipo de reflexão, essa troca de saberes. As mulheres campesinas entram pra universidade trazendo um saber que é enorme, um saber popular que é riquíssimo. Daí quando entram no meio acadêmico, se deparam com outros mil conhecimentos, que ao dialogar com o conhecimento delas, produz um novo saber, e isso é o que liberta.
A emancipação por meio da educação, do ensino superior, atrai mais mulheres do que homens do campo?
Eu não acho que, necessariamente, atrai mais mulheres do que homens do campo. Se a gente for ver pelas estatísticas de ensino superior, as mulheres são maioria. Não estou falando nem de mulheres campesinas, mas mulheres em geral são a maioria no ensino superior. Se a gente pensar nos cursos de educação, por exemplo, formação de professores, pedagogia, licenciatura em educação do campo, a presença feminina é ainda maior.
A expulsão das pessoas do campo para a apropriação de terras pelo agronegócio atinge de forma mais pesada as mulheres?
Sim, com certeza atinge mais as mulheres, por serem historicamente condicionadas a trabalhos que não as remunera de forma igualitária aos homens, tanto no campo quanto na cidade.
No Espírito Santo, a expansão do deserto verde de monocultivos de eucaliptos se mostra como a principal força contrária à vida camponesa. E isso é relatado por muitas mulheres militantes do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do MST. Você vê a educação por meio do Ledoc da Ufes em Vitória e São Mateus, também atuando, no território capixaba, em favor da emancipação das mulheres camponesas?
Os cursos de Licenciatura em Educação do Campo (Ledoc) têm como grande bandeira a preservação do campo, defendendo uma agricultura camponesa, em contraposição ao campo do agronegócio. A Ledoc vem pra denunciar o campo do agronegócio e construir uma proposta de agricultura camponesa junto com os homens e mulheres que estão fazendo esse curso. Por meio da educação, a gente acredita que, fazendo um resgate histórico com esses sujeitos, eles entendam a importância e a necessidade de permanecerem no campo, produzindo e tendo conhecimentos que dialogam com os conhecimentos populares, trazendo os conhecimentos científicos também para o campo, para que esse campo possa se desenvolver e possibilitar que essas pessoas vivam com dignidade no campo. Então, diferentemente do que possa parecer, a educação do campo não preza a fixação do homem e da mulher no campo, para ficarem lá passando necessidade, excluídos de direitos, de políticas públicas, não é isso que a gente está falando. A gente quer que os sujeitos do campo, ao conseguirem ter sua profissão, possam escolher ficar no campo, para que esse campo se desenvolva de uma maneira mais justa e humana, com dignidade. Então, formamos professores, advogados, veterinários, médicos …
A Educação do Campo pensa que essas pessoas que moram no campo têm que ter direito às suas profissões, que consigam ter o seu trabalho e os que quiserem trabalhar na terra também, tenham o seu trabalho na terra, mas que vivam com dignidade. Isso inclui as mulheres. Por que não a mulher ir para a universidade, fazer uma formação, virar uma professora, ter um diploma de ensino superior e voltar pra sua comunidade trabalhando como uma professora, tendo o seu reconhecimento como professora? Isso possibilita um processo de emancipação dessas mulheres. Porque a gente sabe que o histórico de professoras no meio rural era de professoras que ou não tinham formação ou estavam ali porque não queria. O histórico da educação rural no Brasil é esse: a professora não está ali porque ela quer, ela está lá porque ficou numa classificação baixa e acabou “caindo no meio rural”.
A proposta da Licenciatura em Educação do Campo é que os professores se formem, essas mulheres se formem, para voltar e atuar com dignidade, tenham salário e direitos garantidos. E isso vai em favor de uma agricultura que não seja do agronegócio, porque ele expulsas essas pessoas de lá. O agronegócio diz: você não tem que ficar aqui, não tem que ter escola no meio rural, a escola tem que ser na cidade, e a gente pega esses alunos e leva esses alunos para a cidade. E a educação do campo diz: não, é direito desses alunos estudarem próximo onde eles moram.
A gente defende que o curso forme professores para que eles voltem para suas comunidades e trabalhem nessas escolas no meio rural, nessas escolas do campo. É nesse sentido que, no Espírito Santo e outros estados, o curso de Licenciatura em Educação do Campo contribui pra preservação do território camponês com dignidade. Tanto dignidade de conseguir lutar contra a proposta do agronegócio pra Educação do Campo, quanto para vida desses sujeitos. Então, sim, a educação e os cursos superiores em Educação do Campo têm possibilitado em favor disso.
Quais os caminhos para continuar avançando?
A primeira coisa que me vem na cabeça com essa pergunta, é que precisamos tirar o [presidente da República Jair] Bolsonaro. Estamos vivendo um momento complicado para qualquer tipo de avanço feminino, democrático e do campo. Precisaria retomar a nossa democracia, para que o povo tenha novamente liberdade para viver e comer. Está muito difícil pensar em caminhos nesse governo. Primeiro passo pra continuar avançando é que o Bolsonaro saia, para que a gente consiga reconstituir o país com um governo mais popular. Nós já vivemos isso anteriormente.
Serviço: Mulheres da Reforma Agrária na Educação” pode ser adquirido na loja virtual da Editora Appris a R$ 55,00 ou diretamente com a autora, por meio de seu perfil no Facebook ou pelo telefone: (27) 99840-6814, ao preço de lançamento de R$ 25,00, mais frete.