Para Marcela Aguiar, mestranda em Ciência da Informação, ações afirmativas contribuem para combate à marginalização
Uma pesquisa de 2018 feita pela Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) ajuda a avaliar o número de pessoas trans (travestis e transexuais) nestas instituições públicas brasileiras. O resultado mostra que 0,3% dos alunos são trans, sendo a maioria deles formados por pretos e pardos, com número próximo de homens e mulheres.
O tema da inclusão das pessoas trans na universidade vem sendo defendido na única universidade pública do estado, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), atualmente em momento chave durante discussão de seu Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), que define as diretrizes da entidade para os próximos 10 anos e está com consulta aberta até este domingo (21).
Na última década a universidade tem adotado sistemas de ações afirmativas para negros indígenas, pessoas com deficiência e pessoas em situação de refúgio. Agora, grupos como o Núcleo de Estudos Afro-Brasilerios (Neab) e outros movimentos sociais e acadêmicos apontam a necessidade de garantir ações afirmativas como cotas ou reserva de vagas sejam implementadas também para cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado), incluindo também pessoas trans.
O primeiro passo na pós-graduação da Ufes foi dado no final de 2020 pelo Mestrado em Comunicação e Territorialidades, que lançou edital de seleção em que sua política de reserva de 50% das vagas inclui percentuais para pretos, pardos ou indígenas, pessoas trans, pessoas com deficiência e candidatos em condição de refúgio. O desafio é fazer com que esse tipo de prática seja política da universidade, promovendo a inclusão em todos os cursos.
“O acesso às universidades públicas possibilita o rompimento dos muros hegemônicos, os quais foram estruturados para manter a população de travestis e de pessoas trans à margem da sociedade, cerceando o direito à educação”, diz Marcela Aguiar, travesti graduada em Biblioteconomia e atualmente cursando mestrado em Ciências da Informação.
Para ela, a política de cotas ajuda a quebrar paradigmas cisgêneros e heterossexuais, mas deve ser discutida considerando a interseção com as questões de raça e classe, privilegiando sujeitos “menos favorecidos cultural e historicamente”. Ao contrário da pesquisa nacional da Andifes, que aponta 58% dos estudantes trans como negros, Marcela conta que em sua época de graduação na Ufes, entre 2015 e 2018, havia entre eles maioria de alunos brancos e com renda superior a um salário mínimo e meio.
O recorte para análise de pessoas trans, feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar em Ações Afirmativas (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) indica que 33%, ou seja, um terço destes alunos tiveram acesso a algum Programa de Assistência Estudantil. O índice sobe para 38% quando o recorte é de pessoas trans negras. A média geral é de 28%.
Outro dado interessante, é o que aponta que as pessoas trans teriam maior engajamento em movimentos ativistas durante sua passagem pela universidade: enquanto o número de pessoas cis envolvidas com algum tipo de organização política ou social foi de 28%, o número de pessoas trans chegou a 45% no mesmo critério, alcançado 50% quando analisado apenas os homens trans. Os movimentos LGBTQIA+, estudantil e feminista são os que mais engajaram estudantes trans.
Segundo ela, situações como o uso do nome social na biblioteca e outros espaços, os problemas com o uso dos banheiros por conta do gênero, e os cochichos e olhares nos corredores são coisas que fazem parte de um emaranhado de questões que dificultam a permanência nesses espaços e a trajetória acadêmica das pessoas trans. “Ser uma travesti ou uma pessoa transexual já se circunscreve como uma distorção do que a sociedade instaurou como ‘correto’, então toda a estrutura das universidades tem sido arquitetada para corpos cisgêneros”, reclama.
A questão começa ainda antes, no ensino básico, quando os preconceitos e falta de preparo das escolas para lidar com a diversidade sexual, acaba levando muitas pessoas trans a abandonar os estudos ainda antes de concluir o Ensino Médio. Um estudo da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT) divulgado em 2016 apontou que 73% dos mais de mil jovens ouvidos que não se declaram como heterossexuais já haviam sido agredidos verbalmente no ambiente escolar.
Além da escola, os conflitos familiares e religiosos devido à orientação sexual também levam muitas pessoas trans a uma situação de dificuldades econômicas, sociais e psicológicas. O abandono escolar, a situação de vulnerabilidade e o preconceito encontrado no mercado de trabalho são fatores que levam muitas pessoas trans a encontrarem a prostituição como único meio para sobreviver.
As políticas afirmativas para inclusão nas universidades públicas pode contribuir não apenas para mudar esse estigma e gerar condições dignas para muitas pessoas que podem se encontrar em situação de vulnerabilidade por conta dos preconceitos sociais, mas também estimula a criação de novas referências entre as pessoas trans para ocupar espaços de destaque na sociedade, inclusive na docência das escolas, onde é necessário combater a estrutura homofóbica e transfóbica, e das universidades, para o qual a inclusão de cotas e reserva de vagas nos cursos de mestrado e doutorado é importante para que se possa garantir que cheguem ao grau de professores universitários.
A sugestão do Neab é de adoção de indicadores e metas de curto, médio e longo prazo que garantam um percentual mínimo e crescente de presença de estudantes negros, indígenas, pessoas com deficiência e pessoas trans em todos os programas de mestrado e doutorado da Ufes.