Estão abertas até a próxima segunda-feira (29) as inscrições para o Mestrado Profissional em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). No edital deste ano, 65% das vagas, nas duas linhas de pesquisa, são de ampla concorrência e 35% delas dedicadas a ações afirmativas voltadas para pretos, pardos e indígenas (PPI), pessoas com deficiência (PCD) e pessoas trans (transexuais e travestis), na seguinte proporção: 25% para PPI, 5% para PCD e 5% para pessoas trans.
Coordenador-geral do Mestrado Profissional em Educação (MPE), o professor-doutor Soler Gonzalez conta que a reserva de vagas tem sido discutida desde 2020 pelo colegiado do curso e que um passo importante para concretizá-la foi a formação de uma comissão de políticas afirmativas composta por docentes do MPE, que se debruçou sobre experiências semelhantes já vigentes em outros editais da Ufes e de outras universidades, e conversou com pesquisadores que atuam com educação especial, estudos étnico-raciais, educação indígena e questões de gênero e sexualidade.
“Ao ofertarmos as reservas de vagas estamos dizendo, para a universidade e a sociedade, que o Mestrado Profissional em Educação reconhece o seu compromisso social e político, no sentido de acolher as demandas da sociedade e garantir que essas pessoas ingressem na pós-graduação”, afirma Soler. Para o coordenador, “cabe à universidade, como uma instituição pública e social, um olhar mais atendo e acolhedor para com essas populações, que historicamente vivenciam processos de exclusão, violência e de opressão”.
Acesso e permanência
Na prática, ressalta, além do ingresso na universidade, é preciso garantir a permanência dessas pessoas, para que elas possam concluir suas pós-graduações. “Esse será o nosso próximo passo”, consigna.
A permanência e obtenção de seus desejados títulos são também pontos destacados por Arneida Coutinho, mestranda no MPE em Educação Inclusiva. “Eu concordo com as cotas, mas a questão não é só acesso, a universidade tem que prever a permanência do aluno para que ele conclua o curso”, afirma.
Portadora de baixa visão, Arneida relata que tem sido grande a desistência de estudantes que, como ela, possuem alguma deficiência física, o que lhes dificulta enormemente conquistar seu título, mesmo após serem admitidas na universidade capixaba. “Não há garantia da permanência”, aponta.
Pequenas conquistas recentes provocam uma grande inclusão. No tocante à deficiência visual, hoje a Ufes dispõe de maquinário como scaner adaptado e impressora Braille, além de bolsistas que auxiliam os graduandos e pós-graduandos em suas pesquisas em documentos e internet.
“São ferramentas de acessibilidade que facilitam o acesso aos conteúdos. A biblioteca central da Ufes não tem um setor de audiolivros nem setor de livros online. A pesquisa na internet tem limitações, porque muitas plataformas não possuem acessibilidade suficiente: você consegue entrar, mas não consegue navegar para chegar onde quer. A gente tem que contar com os olhos dos bolsistas”, depõe.
A pesquisa de Arneida é sobre a deficiência visual na Ufes desde os primórdios, quando o Instituto Braille possuía um alojamento, que abrigava alguns estudantes. O primeiro aluno que entrou na universidade com deficiência visual, conta Arneida, foi no curso de Direito, nos anos 1970. Ele se formou, se tornou juiz e foi morar em outro estado.
Foram tempos ainda mais difíceis, avalia. “Como esses alunos foram recebidos na época? O que a Ufes oferecia? Não tinha máquina para impressão Braille, não tinha informática, eles estudavam com gravador portátil e contavam com a colaboração de colegas, não havia regras que garantiam a adaptação do currículo”, descreve.
Ela própria, reconhece, está escrevendo essa história. “Eu sou a primeira aluna com deficiência visual a entrar no Mestrado Profissional de Educação”, informa, com surpresa. “Uma universidade que foi inaugurada em 1954 e só agora está conseguindo que os alunos deficientes cheguem ao mestrado e doutorado. Porque antes só a graduação ‘já estava bom’. Mas agora estamos galgando outros espaços”, afirma.
A pesquisa quantitativa, conta, consegue ser mais precisa a partir dos dados do ano 2000, quando a audeclaração como deficiente passou a constar na matrícula do estudante, isso bem antes do primeiro vestibular ser realizado já na vigência da lei de cotas, por volta de 2016.
A criação do Núcleo de Atendimento à Pessoa com Deficiência (Naufes) foi um marco, destaca, principalmente devido ao trabalho do professor Douglas Ferrari, que foi o primeiro aluno com deficiência visual no doutorado em Educação. “A passagem dele no Naufes foi muito importante, porque, sendo deficiente, ele conseguiu implementar medidas muito precisas”, observa.
‘Um direito leva a outro direito’
“Um direito leva a outro direito”, afirma o professor Douglas Ferrari, ao avaliar a importância de mais um mestrado adotar a reserva de vagas na Ufes. “Diferentemente do pensamento neoliberal, o acesso à graduação por meio de políticas afirmativas leva as pessoas a quererem uma pós-graduação”, aduz, com entusiasmo.
E o fato dessa política ter chegado ao mestrado profissional de Educação é ainda mais estratégico para a inserção de uma população ainda tão excluída da vida acadêmica, pois através da Educação é possível atuar de forma muito direta na transformação da sociedade.
“Por isso é tão importante que estejam presentes, nas escolas, nos cursos de graduação e pós-graduação, pessoas que historicamente foram colocadas à margem, como negros, indígenas, pessoas com deficiências, pessoas trans”.
O mestrado profissional é ainda mais incisivo nesse aspecto transformador, acentua Douglas, pois é voltado para professores que possuem vínculo, que estão trabalhando nas salas de aula. “A gente vê profissionais que há dez anos, quinze anos, não frequentavam bancos de uma universidade. Por isso, esse mestrado profissional é uma ação afirmativa por si só, ao trazer esses professores de volta para a universidade”, celebra.
Douglas ressalta que “a área de educação é sempre muito visada e há uma vigilância sobre os currículos”. Recentemente, recorda, a Câmara de Vitória aprovou um PL que proíbe assuntos pornográficos nas escolas. Por isso, avalia, “apesar de outros editais anteriores terem a mesma reserva de vagas, esse foi o primeiro a ser questionado por pessoas de fora da própria universidade”.
De fato, no início do ano, o edital do MPE foi alvo de questionamentos vindos, pasme, da Câmara de Vitória, por meio de ofícios enviados pelos vereadores Gilvan da Federal (Patriota) e Davi Esmael (PSD) criticando especialmente as cotas dedicadas às pessoas trans.
Tabu
Essa verdadeira perseguição contra as pessoas trans é bem conhecida pela servidora pública federal Viviana Corrêa, uma das poucas travestis a alcançar o lugar de servidora efetiva da Ufes. “Até hoje, na maioria das vezes que eu converso com colegas, eu sou a primeira pessoa trans com quem eles afirmam ter contato aqui dentro”, declara Viviana.
Essa experiência cotidiana, salienta, ajuda a entender o lugar na sociedade que é reservado para as pessoas trans. “É o lugar do gueto; o lugar da universidade não é reservado pra nós”, observa. A instituição de ações afirmativas na graduação e na pós-graduação, assevera, “é essencial para repensar o futuro dessa população na nossa sociedade”. Uma população, sublinha, que é alvo dos maiores índices de violência e assassinato no país.
“Nós temos números que são, ao meu ver, alarmantes: 90% dessa população é excluída do mercado formal de trabalho, dependendo da prostituição para sobreviver, e tem uma expectativa de vida muito baixa, de 35 anos de idade”, informa, com base nos levantamentos anuais feitos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Ainda assim, qualquer ação no sentido de trazer um pouco de justiça social a essa população é sempre cercada de questionamentos e tentativas de inviabilização. “É um tabu. Mesmo dentro de instituições como as universidades, a necessidade de ações afirmativas para esse público não é um consenso”, afirma.
Considerando que a Ufes está alguns passos atrás de outras instituições que já avançaram mais nesse aspecto, Viviana comemora as primeiras iniciativas que temos visto surgir nos últimos anos. “Já é o início de um diálogo na intenção de minimizar toda a exclusão, todo o processo de violência que essa população vem sofrendo há muitos anos”.
Consulta Pública
O momento é oportuno para que a Ufes possa avançar mais nesse aspecto, com a renovação do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), documento responsável por definir o objetivo, a missão, as diretrizes de trabalho e os compromissos institucionais da universidade nos próximos 10 anos (2021 a 2030).
A consulta pública foi encerrada nesse domingo (21) e a expectativa, conclama Douglas Ferrari, é de que seja possível, com a participação da comunidade acadêmica e dos movimentos sociais da sociedade civil, “construir uma ‘Ufes Pluriétnica e Inclusiva'”.