Apresentado em regime de urgência na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3.292/2020, que promove mudanças na lei que rege o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), é rejeitado por trabalhadores rurais do Espírito Santo. Entre as alterações, a oferta de carne suína ao menos uma vez por semana nas escolas, reserva de mercado para leite fluido, retirada da obrigação do trabalho de nutricionistas para elaboração do cardápio, e fim da prioridade às comunidades indígenas e quilombolas no fornecimento de alimentos.
O projeto, de autoria do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), é considerado pelo Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) um atentado ao PNAE. “Trata-se do desmonte de uma política pública conquistada com muito esforço, uma tentativa de atender os interesses dos grandes laticínios e frigoríficos, desprestigiando o pequeno agricultor e os povos tradicionais. Uma ameaça, um retrocesso”, critica Dorizete Cosme, que integra a coordenação do movimento no Estado.
O gerente da Cooperativa dos Agricultores Familiares da Região Serrana do Espírito Santo (CAF Serrana), Maicon Koehler, afirma que, entre trabalhadores das pequenas cooperativas, existe o receio de redução das vendas de leite para o Programa Nacional. De acordo com ele, o projeto prevê que 40% do leite adquirido por meio do programa têm que ser fluido. Assim, explica, há possibilidade de preferência da aquisição de leite UHT, que é em caixinha, e não do chamado “barriga mole”, que é no saco plástico, mais comercializado pelas pequenas cooperativas.
A preferência pelo UHT, como aponta Maicon, é devido ao fato de que o outro tem validade muito curta e precisa de uma estrutura maior de refrigeração.
O integrante da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Espírito Santo (MST), Adelso Rocha Lima, enxerga o projeto como uma forma de criar reserva de mercado para o agronegócio ao pré-estabelecer a aquisição de produtos como leite fluido e carne suína. No Espírito Santo, ressalta, poucos produtores terão condição de oferecer esses dois alimentos em grande quantidade e de maneira contínua, portanto, os grandes laticínios e frigoríficos serão beneficiados.
O MST, conforme relata Adelso, apesar de produzir leite, precisaria montar uma indústria de beneficiamento do produto dentro das normas da Vigilância Sanitária. Ele afirma que o Fundo de Apoio à Agricultura Familiar (Fundaf), criado na primeira gestão do governador Renato Casagrande, poderia estruturar a cadeia do leite no Espírito Santo, “porém, até o momento, os editais não viabilizaram essas condições”, lamenta.
O requerimento de urgência para a votação do projeto de lei foi aprovado em 18 de março. Ainda não há previsão de quando a proposta irá para plenário, mas, segundo o deputado federal Helder Salomão (PT), como tramita em caráter de urgência, pode ser que nem passe pelas comissões da Câmara.
O parlamentar afirma que, na última sexta-feira (26), a bancado PT se reuniu e defende que a proposta não seja votada. Um dos pontos mais críticos do projeto, para Helder, é o fim da prioridade às comunidades indígenas e quilombolas no fornecimento de alimentos, fazendo com que esses grupos tenham que disputar com produtores mais estruturados. Outra crítica é em relação à dispensa da atuação de nutricionistas na elaboração dos cardápios.
“A merenda tem que ser de qualidade. Não pode ser feita de maneira aleatória. Tem que levar em consideração, inclusive, que, infelizmente, muitas vezes o aluno tem comida melhor na escola do que em casa. O projeto é muito ruim, descaracteriza uma política construída coletivamente e que já até ganhou premiação internacional”, diz o deputado, que defende que, além de indígenas e quilombolas, pescadores artesanais também devem ter prioridade no fornecimento de alimentos ao Programa Nacional de Alimentação Escolar.
O Observatório da Alimentação Escolar é contrário ao projeto e organiza uma petição a ser enviada para os parlamentares. Para o grupo, a aquisição de produtos da agricultura familiar por meio do PNAE “já está suficientemente regularizada”. Além disso, a iniciativa fere o inciso I do Art. 2 da Lei 11.947/2009, que estabelece “o emprego da alimentação saudável e adequada, que compreende o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar, em conformidade com a sua faixa etária e seu estado de saúde, inclusive dos que necessitam de atenção específica”.
O Observatório também afirma que, “ao criar cota específica para a aquisição de um determinado tipo de alimento, a presente proposta abre precedente para uma série de possíveis reservas de mercado, que respondem aos interesses dos mais diversos tipos de lobby”, além disso, prossegue o grupo em sua petição, “há de se considerar a falta de estrutura de muitas escolas, especialmente nos municípios mais pobres, para o devido armazenamento do leite fluido”.
O documento afirma que não priorizar indígenas e quilombolas “representa um retrocesso do ponto de vista da garantia de direitos destes povos, que já vêm perdendo direitos territoriais e acesso a políticas públicas”.