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Sophia de Mello Breyner Andresen e seu livro Geografia

Livro faz uma abordagem sobre o Brasil em alguns poemas

Sophia de Mello Breyner Andresen tem uma espécie de relação suspensa com o espaço e o tempo, pois estas categorias se fundem na entidade do nada, um tipo de vacuidade abarcando a existência que atinge diretamente a reflexão poética.

A poeta se irmana e entra numa fusão com o cosmos, um tipo de pensamento que simula um movimento da alma que se mistura ao cosmos, enfim, uma paixão cosmológica domina um dos anelos da poesia de Sophia.

O olhar dela possui uma dupla dimensão que pode pender às pequenas coisas e, num dado momento, a uma paisagem que se une ao todo, e tal relação define uma vivacidade dos instantes.

Sophia usa palavras como instante, solidão e silêncio como um meio em que sua poesia se instala na relação com os espaços e a realidade, seja esta material ou espiritual, transitando entre História e Mito, e colocando o eu-lírico nesta inflexão que flui entre pequenos espaços e uma paisagem totalizante.

Por sua vez, ela dá continuidade ao seu trabalho poético no livro Geografia, de 1967, que funciona como um prolongamento de Livro Sexto, sobretudo, as características formais, que envolvem concisão, poemas que se encerram, em geral, com brevidade, sintéticos e diretos, uma riqueza melódica que se alia a contraposições rítmicas.

Na vivência biográfica da poeta, esta inscrição nos aparece em sua poesia, neste livro, com a sugestão do título, uma geografia, a experiência da viagem e os dados históricos e sobre a mitologia.

Temos aqui as luzes das praias do Algarve e as das ilhas gregas, revezando com temas anteriores abordados, como a política e a cultura. No panorama político, temos um tipo de cartografia que revela o cenário de Portugal nos estertores do Salazarismo, seguida da segunda parte do livro, que já é a realidade portuguesa dos anos 1960.

Depois de um trabalho de proximidade com João Cabral de Melo Neto, em O Cristo Cigano, neste seu livro Geografia temos uma abordagem sobre o Brasil em alguns poemas, que são escritos bem interessantes, tais como Manuel Bandeira e Brasília, este último que nos dá versos impressionantes sobre a capital projetada do Brasil.

DE GEOGRAFIA

INGRINA: A poeta reflete e vê o grito da cigarra e vislumbra a felicidade, no que temos : “O grito da cigarra ergue a tarde a seu cimo e o perfume do orégão invade a felicidade. Perdi a minha memória da morte da lacuna da perca do desastre. A omnipotência do sol rege a minha vida enquanto me recomeço em cada coisa. Por isso trouxe comigo o lírio da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do primeiro dia – e vi o mar reflectido no seu primeiro espelho. Ingrina.”. A onipotência do sol, e toda a riqueza da poesia de Sophia, aqui, em forma de poema em prosa, em toda a sua intensidade : “É esse o tempo a que regresso no perfume do orégão, no grito da cigarra, na omnipotência do sol.” (…) “O meu reino é meu como um vestido que me serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo : nesta manhã eu recomeço o mundo.”. As imagens naturais, e a força metafórica com um estro clássico que desenha bem toda a potência poética.

MUNDO NOMEADO OU DESCOBERTA DAS ILHAS: A paisagem se abre em toda a sua riqueza natural e metafórica, aqui a inflexão de Sophia é tanto poesia como descrição de um cenário, no que vem : “Iam de cabo em cabo nomeando/Baías promontórios enseadas :” (…) “E as coisas mergulhadas no sem-nome/Da sua própria ausência regressadas/Uma por uma ao seu nome respondiam/Como sendo criadas”. A relação dos nomes e das coisas e sua essência inominável fundam a anfibologia deste poema, que é, mais uma vez, uma paisagem que Sophia nos oferece. A nomeação, aqui, é criada, o regresso ao fundo oco retoma o jogo, em seguida, e seu estatuto existencial, com um novo nome, criatividade e criação.

TÚMULO DE LORCA: O poema homenageia o poeta Lorca, este que foi executado, e todo o poema canta, celebra e retoma o tema da execução e da figura do próprio poeta, no que vem : “Em ti choramos os outros mortos todos/Os que foram fuzilados em vigílias sem data/Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias” (…) “Choramos sem consolação aqueles que sucumbem/Entre os cornos da raiva sob o peso da força”. A inconformidade comum e demasiado humana diante da morte e, mais ainda, diante da tragédia, vai de encontro ao instinto comum da felicidade que, quando se depara com a dureza da dor, ou se desampara, ou a enfrenta, no que temos : “Não podemos aceitar. O teu sangue não seca/Não repousamos em paz na tua morte/A hora da tua morte continua próxima e veemente/E a terra onde abriram a tua sepultura/É semelhante à ferida que não fecha”. E o poema, com o cheiro ainda do sangue, celebra Lorca : “O teu sangue não encontrou nem foz nem saída/De Norte a Sul de Leste a Oeste/Estamos vivendo afogados no teu sangue/A lisa cal de cada muro branco/Escreve que tu foste assassinado”. No fim, com todo o esforço de Sophia, o tema ainda é a inconformidade, no que vem : “Não podemos aceitar. O processo não cessa/Pois nem tu foste poupado à patada da besta/A noite não pode beber nossa tristeza/E por mais que te escondam não ficas sepultado”.

NO DESERTO: O poema abre cenários antigos e a imagem do cavalo, e seu tema sobre o deserto lhe toma o norte, no que temos : “Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino/Eu te debelo com espora e rédea” (…) “Para que não te percas nas cidades mortas/Para que não te percas/Nem nos comércios de Babilónia/Nem nos ritos sangrentos de Nínive” (…) “Eu aponto o teu nariz para o deserto limpo/Para o perfume limpo do deserto/Para a sua solidão de extremo a extremo”. O combate da poeta é pelo domínio, esta energia que impulsiona o estro que aqui se abre : “Por isso te debelo te combato te domino/E o freio te corta a espora te fere a rédea te retém” (…) “Para poder soltar-te livre no deserto/Onde não somos nós dois mas só um mesmo/No deserto limpo com seu perfume de astros/Na grande claridade limpa do deserto/No espaço interior de cada poema/Luz e fogo perdidos mas tão perto/Onde não somos nós dois mas só um mesmo”. O espírito de fusão, por fim, mais uma vez, revela um dos ideais do trabalho poético de Sophia.

OS ESPELHOS: O espelho reflete a sua relação concreta e abstrata com a pupila, e aqui com a participação da poesia, no que temos : “Os espelhos acendem o seu brilho todo o dia/Nunca são baços/E mesmo sob a pálpebra da treva/Sua lisa pupila cintila e fita/Como a pupila do gato/Eles nos reflectem. Nunca nos decoram”. Neste reflexo não está mais a visão, mas a vida interior, uma alma habita este espelho que reflete quem lhe olha com seu fogo frio e vítreo, a coda : “Porém é só na penumbra da hora tardia/Quando a imobilidade se instaura no centro do silêncio/Que à tona dos espelhos aflora/A luz que os habita e nos apaga :/Luz arrancada/Ao interior de um fogo frio e vítreo”.

NO GOLFO DE CORINTO: A paisagem habita a poesia de Sophia sempre de uma forma bela e clássica, no que temos : “No Golfo de Corinto/A respiração dos deuses é visível :/É um arco um halo uma nuvem/Em redor das montanhas e das ilhas/Como um céu mais intenso e deslumbrado”. Tal geografia aqui se carrega de mitologia, e o poema se enriquece, tem uma simbologia que incrementa uma paisagem real : “E uma luz cor de amora no poente se espalha/É o sangue dos deuses imortal e secreto/Que se une ao nosso sangue e com ele batalha”.

EPIDAURO: A descrição do cenário cretense e sua mitologia do Minotauro, aqui, mais uma vez, a proximidade da poesia de Sophia com temas antigos e sua recriação poética, no que temos : “O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é :/trazida à luz/trazida à liberdade da luz/trazida ao espanto da luz” (…) “Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real.”. A poeta tenta não ser devorada por este ser mitológico, e também luta para que toda a existência não tenha este destino, o jogo imagético se torna impressionante, a citação do vaso cretense nos faz lembrar exatamente de uma foto deste vaso, o polvo, e a cidade de Cnossos, e segue : “Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro.” (…) “Só poderás ser liberta aqui na manhã d`Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto para te reconhecer e a doçura da luz te parece imortal. A tua voz subirá sozinha as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das sílabas – portadoras limpas da serenidade”. A violência do Minotauro pode ser a violência humana, de um homem, o que resta é resgatar a voz da serenidade, que encerra o poema, após este terror mitológico de violência e devoramento.

ÍTACA: A descrição da embarcação e de sua mecânica se funde em um poema que também aponta um nascimento, um segundo nascimento, a restituição é rica e potente, no que temos : “Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas/verdes de Brindisi/Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos/remos e guindastes” (…) “Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos/Quando o barco rolar na escuridão fechada/Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar/Porque esta é a vigília de um segundo nascimento”. O poema refunda uma existência, a poeta aqui em sua inteireza descreve esta experiência de plenitude e completude, reunião, religare, retomada, restituição, a sabedoria renasce, a vida recomeça : “O sol rente ao mar te acordará no intenso azul/Subirás devagar como os ressuscitados/Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial/Emergirás confirmada e reunida/Espantada e jovem como as estátuas arcaicas/Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto”.

MANUEL BANDEIRA: O poema de Sophia homenageia o poeta brasileiro Manuel Bandeira, no que temos : “Este poeta está/Do outro lado do mar/Mas reconheço a sua voz há muitos anos/E digo ao silêncio os seus versos devagar” (…) “Eu recitava/”As três mulheres do sabonete Araxá”/E minha avó se espantava” (…) “Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó/Quando em manhãs intactas e perdidas/No quarto já então pleno de futura/Saudade/Eu lia/A canção do “Trem de ferro”/E o “Poema do beco””. A poeta cita a sua avó e a admiração desta por este poeta, e segue : “Quando/Me sentava nos bancos pintados de fresco/E no Junho inquieto e transparente/As três mulheres do sabonete Araxá/Me acompanhavam/Tão visíveis/Que um eléctrico amarelo as decepava”. Os poemas de Bandeira ecoam neste poema de Sophia, e temos : “Estes poemas caminharam comigo e com a brisa/Nos passeados campos da minha juventude/Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro/E foram parte do tempo respirado”. É tanto uma leitura, como uma lembrança, é a experiência de Sophia com a poesia de Manuel Bandeira.

BRASÍLIA: Este poema tem uma descrição impressionante de Brasília, nesta ligação de Sophia, agora não apenas com a poesia brasileira, mas agora com a paisagem brasileira, e no caso de Brasília, por conseguinte, com a arquitetura e a concepção urbana desta cidade projetada, no que temos : “Brasília/Desenhada por Lúcio Costa Niemeyer e Pitágoras/Lógica e lírica/Grega e brasileira/Ecuménica/Propondo aos homens de todas as raças/A essência universal das formas justas”. Aqui a relação das formas justas remete, para Sophia, às formas clássicas gregas, Pitágoras é evocado, depois Babilônia surge, paisagem e arquitetura viram uma fusão em que a poesia de Sophia se expande, no que vem : “Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem/Nítida como Babilónia/Esguia como um fuste de palmeira/Sobre a lisa página do planalto/A arquitectura escreveu a sua própria paisagem”. E a citação social, refletindo da riqueza arquitetônica, braços destes candangos que ergueram uma façanha, e toda a clareza racional idealizada aqui pela poeta : “No extremo da caminhada dos Candangos/No extremo da nostalgia dos Candangos/Athena ergueu a sua cidade de cimento e vidro/Athena ergueu sua cidade ordenada e clara como um pensamento/E há no arranha-céus uma finura delicada de coqueiro”.

DA TRANSPARÊNCIA: O jogo da realidade ganha aqui contrastes que podem confundir os sentidos, se perder se torna fácil e tentador, o poema vem : “Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência/No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios/Mas sufocado sonho/E não sabemos bem que coisa são os sonhos/Condutores silenciosos canto surdo/Que um dia subitamente emergem/No grande pátio liso dos desastres”. E dentro da vida interior, residência da alma, sonhos, que se não os colocamos nas rédeas dos objetivos, podem emergir desordenados num cenário de desastres.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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