“Dividir para conquistar. Já conhecem esse termo? É uma estratégia de guerra que todas as grandes empresas usam. Foi assim com Manabi e está sendo assim com a Samarco. Isso é o comum: querer dividir as pessoas. Se você não cuidarem disso, elas vão passar por cima de vocês. Tem que estar unidos e usar suas associações como veículos de luta”.
A fala clara e firme do procurador da República em Linhares, Paulo Henrique Camargos Trazzi, foi uma tentativa de injeção de ânimo na luta dos atingidos que estavam presentes em uma reunião convocada pela Fundação Renova realizada em Regência na última quinta-feira (01).
Apesar dos alertas nesse sentido já estarem sendo dados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em suas ações de apoio às vítimas do crime da Samarco/Vale/BHP, muitos moradores da Vila de Regência Augusta receberam a fala – quer dizer, os que conseguiram absorver a informação, depois de mais de duas exaustivas horas de apresentações massivas de dois consultores da Fundação Renova – com surpresa.
Apenas alguns moradores da comunidade vizinha de Ribeirinhos (antiga Entre Rios) mostraram familiaridade com o termo e expressaram sua indignação com a atuação da empresa. “A gente não tem respeito por nenhuma empresa que foi lá pra fazer cadastro da gente”, dispara Nilton José dos Santos, membro da Associação dos Ribeirinhos de Terra Tradicional da Foz do Rio Doce, em Regência, Linhares. “Ela jogou lama na terra e no rio, quer dizer, fez dois crimes e até hoje ela não fez nada, não tá fazendo nada”, bradou.
Mais de trinta visitas e nenhum cadastro feito
Momentos antes do início da reunião, a auxiliar administrativo Naiana Meireles comentou, em particular, o transtorno inimaginável em que essa estratégia de guerra se transforma, na vida das pessoas, ao ser colocada em prática. “Já foram mais de 30 vezes fazer cadastro lá em casa. E até agora ninguém recebeu”, reclama. “Já fiquei tantas noites sem dormir e não aconteceu nada. Desisti, cansei”, lamenta.
O tema da reunião não eram os benefícios, os famigerados cartões, e sim a questão ambiental, o trabalho de fortalecimento das barragens e de redução do carreamento que ainda acontece de lama para o rio, bem como as ações de recuperação dos córregos e as análises toxicológicas em organismos do mar e do rio. Informações que pouca serventia têm para aqueles que, há mais de um ano, se veem privados de trabalhar na única profissão que aprenderam ao longo da vida ou que ficaram impossibilitados de usufruir dos elementos fundamentais que caracterizam sua cultura, sua identidade, seu modo de vida tradicional.
“Tem o desastre ambiental, mas tem também o desastre emocional”, reclamou Gleusiane dos Santos Carlos Correia, coordenadora da Confecção do Projeto Tamar e liderança da Igreja Católica. “A gente não pode mais tomar caldo de bagre!”, tenta brincar e descontrair, mas dando um exemplo muito direto dessa desestruturação cultural.
“Houve uma ruptura da coesão social”, confirma Joca Thomé, coordenador estadual do Projeto Tamar. Anfitrião da reunião, realizada no auditório da instituição, dentro do Centro de Visitantes da Vila, o coordenador procurou conduzir o encontro de uma forma diplomática, o que favoreceu, ao final, essas e outras expressões de sentimentos e necessidades.
“Estamos dando o nosso máximo”
Em resposta, os consultores mantralizavam frases como “Em hipótese alguma dizemos que o que está sendo feito é suficiente para dar tranquilidade às pessoas. Mas estamos dando o nosso máximo”. Falas sinceras e até simpáticas da parte dos dois “soldados” da Fundação. Mas que não podem esmorecer a postura de enfrentamento necessária por parte de todos os atingidos.
“A gente quer uma solução, a gente quer poder voltar a trabalhar de novo. E se não tiver como a gente voltar, que eles façam alguma coisa por nós”, reclama o agricultor Wellington Fontes Gomes, de Riberinhos. “Se você plantar, você não colhe e se você colher, você não tem como vender”, emenda Nilton. “Eu vendia milho, banana … hoje chego com milho e falo que é daqui da região, ninguém quer”, relata Wellington.
“Nós plantamos cacau duas vezes. Morreu tudo. Da primeira, pegamos mais mudas na CEPLAC, mas esse de agora foi todo comprado. E tá todo dentro da lama, vai morrer tudo”, conta, com tristeza e revolta, a agricultora Augusta Porto Lino, também de Ribeirinhos.
Desesperador
Gleusiane conta que seu marido, pescador, fez um tanque no quintal de casa, que enche com a água do carro-pipa (quem vem de Linhares, onde a água retirada da Lagoa Nova é tratada para posterior envio para Regência) para criar peixes e cultivar hortaliças em sistema semelhante ao hidropônico. Ela, que tem serviço administrativo do Projeto Tamar, no começo aceitou de bom grado não buscar se cadastrar para receber cartão, pois a prioridade eram os pescadores. Mas ao ver tantas pessoas com renda como ela sendo cadastradas, se juntou à revolta generalizada e ao clima de discórdia que impregna a vila.
Relembrando o dia que a lama chegou na foz do Rio Doce, o rosto mostra o pesar profundo. Ela estava viajando e estava grávida. “Minha filha [mais velha, em Regência], me ligava chorando, dizendo que o rio tinha acabado, que o mar tinha acabado. Até hoje ela sofre por não poder brincar na água”, conta. “É assustador, desesperador pra todo mundo que mora aqui, que nasceu aqui no rio”, suspira.
Acreditar
Apesar de todo o cansaço que a maçante apresentação técnica que a Renova impôs aos ouvintes, foi de certa forma alentador presenciar o desabafo, mesmo que tímido, ao final, e as falas firmes do procurador desmascarando a estratégia de guerra da Samarco/Vale/BHP. Tudo precisa ser dito cara a cara e, fundamental, a comunidade precisa se unir e lutar.
É possível acreditar que o Rio Doce se recupere e retome uma condição ambiental melhor que havia no dia 05 de novembro de 2015. Esse crime monstruoso foi o tiro de misericórdia para um rio já tão degradado. E pode se transformar – desde que as empresas sejam finalmente responsabilizadas criminalmente e comecem a fazer um trabalho sério de reparação dos danos socioambientais – em uma oportunidade de restabelecer condições digna para a biodiversidade e a sociodiversidade que depende dele. É o mínimo. E não podemos exigir menos do que isso.