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A revolta indígena que os capixabas desconhecem

Historiadores buscam entender rebelião em Reritiba (Anchieta), que resultou na criação da comunidade autônoma de Orobó

Um fato histórico pouco conhecido ocorrido na então Capitania do Espírito Santo vem sendo analisado e investigado por pesquisadores em estudos recentes. Praticamente desconhecida pelos capixabas, a Revolta de Reritiba foi um raro caso de uma grande rebelião de povos originários contra a ordem colonial representada pelos aldeamentos ligados aos religiosos jesuítas.

Somente com a descoberta de documentos que se encontravam no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, o ocorrido voltou a ser revisitado recentemente após séculos de esquecimento. Arquivos da Devassa, processo inquisitório criado pela Igreja Católica após a expulsão dos jesuítas em 1759, colheram depoimentos de 62 homens, incluindo 11 indígenas, relatando diversos abusos cometidos pelos religiosos e também fatos históricos, como a revolta indígena.

Os relatos, porém, precisam ser analisados com olhar crítico, ressalta o professor de História da Universidade Federal do Estado (Ufes) Luiz Claudio Ribeiro, que publicou um livro reunindo todos estes depoimentos na íntegra. Representam um registro raro de depoimentos indígenas, feitos oralmente mas transcrito por padres, com uma intenção evidente de incriminar os jesuítas. Mesmo tendo acontecido quase 20 anos após a revolta, os relatos reforçam a força do episódio, que depois deu origem à fundação de uma comunidade indígena independente na região.

“O quebra-cabeça da história colonial é difícil de montar por conta dos documentos históricos. O evento ocorrido no Espírito Santo tem relevância muito grande e deve ser resgatado e recuperado devido à sua dimensão. Embora seja um evento localizado, é muito importante para o entendimento não só da realidade local mas também da formação histórica do período de colonização do Brasil”, aponta Luís Rafael Araújo Corrêa, estudioso do caso, que irá lançar em breve um livro sobre o tema. Embora haja uma data que marca o início da rebelião, os historiadores acreditam que o desatar do episódio foi fruto do acúmulo anterior de uma série de insatisfações de parte dos povos aldeados.

Revolta e refúgio na comunidade de Orobó

O estopim da revolta se dá no dia 29 de setembro de 1742, em Reritiba (ou Rerigtiba), hoje município de Anchieta, o maior aldeamento do Espírito Santo em sua época, que pode ter chegado a abrigar cerca de 5 mil indígenas e foi o segundo maior povoamento da capitania. Era dia da procissão em devoção a São Miguel e a igreja estava cheia com pessoas locais e visitantes do entorno. Depois de um desentendimento que teria ocasionado por ciúmes em relação a uma indígena casada, o seminarista Manoel Alves agrediu e feriu gravemente o esposo dela, Fernando Silva. Diante disso, vários indígenas se revoltaram e expulsaram os padres responsáveis pela aldeia, que foram substituídos.

Após negociações dos responsáveis locais da Igreja Católica com os indígenas, que impuseram condições relacionadas com a escolha dos administradores da aldeia, mudanças nas condições de trabalho e anistia aos rebeldes, os padres expulsos voltaram. Porém, o não cumprimento das promessas e uma tentativa de emboscada dos padres para se vingar dos líderes da revolta levaram a uma nova rebelião, que teria resultado na fuga de quase metade dos indígenas aldeados, que fundaram uma comunidade no Vale do Orobó, em Piúma.

Quadros de Ronaldo Moreira, que fazem parte do acervo da Casa da Cultura de Anchieta, mostram cenas de revoltas indígenas

A tradução de Orobó seria “a nós com a exclusão de vós”, demarcando um espaço de liberdade e autonomia dos indígenas, se livrando da tutela jesuita. O número de pessoas que se refugiaram no local é incerto, mas como há relatos que apontam para cerca de metade da população da época, esse número pode ter chegado a algo entre mil e 3 mil habitantes, analisam historiadores.

No local já foram realizadas algumas pesquisas arqueológicas, buscando indícios materiais que ajudem a entender esse processo histórico, sobretudo a partir da análise de cerâmicas encontradas no local, datadas de diversas épocas de acordo com os estudos. O arqueólogo Henrique Valadares, que participou de escavações no Vale do Orobó aponta que o material coletado aponta que o grupo deveria ser predominantemente tupinikim, que durante este período de refúgio fora dos aldeamentos mostram uma intensificação da etnicidade.

Embora as aldeias jesuítas pudessem reunir diversas etnias, os documentos históricos invisibilizam a identidade dos grupos, generalizando-os com o termo “índios” ou “índios mansos”, como aponta Henrique, já que haviam também grupos indígenas viviam fora dos aldeamentos e resistiam ao contato com os jesuítas. O historiador e também pesquisador da revolta, Leonardo Bourguignon, acredita que o episódio também demonstra a disputa existente entre diferentes grupos indígenas aldeados em Reritiba para ocupar os cargos de administração da aldeia, estabelecendo relações de aliança e inimizade de acordo com seus interesses em suas relações interétnicas e com os jesuítas.

Além da questão étnica, o arqueólogo indica que também que há vestígios que evidenciam que em Orobó havia maior liberdade dos indígenas. Um exemplo são cerâmicas encontradas são vinculadas ao preparo do Cauim, bebida alcoólica feita pela fermentação da mandioca utilizada de forma ritual pelos indígenas, mas que era proibida pelos padres. Outros artefatos encontrados são adornos característicos de cerimônias de vingança. Também se registram presença de cerâmicas portuguesas, que poderiam ter sido saqueadas durante a revolta ou depois dela.

A maior revolta indígena na capitania no período colonial

Os historiadores analisam que a rebelião representou um marco importante sobre a questão indígena e a história do Espírito Santo, tal como a Insurreição de Queimado, realizada por negros escravizados na Serra, representa para a história dos povos afrodescendentes, como símbolo da insatisfação contra a ordem colonial que os subjugava.

“O evento aponta para o protagonismo dos indígenas na história, diferente do que se costuma ver em livros didáticos, que trazem muitas vezes uma interpretação muito passiva sobre eles. A revolta mostra que tinham suas reivindicações e bandeiras de luta, sobretudo por autonomia. Embora não fossem escravos, o status de aldeados trazia uma série de restrições, não tinham liberdade irrestrita e os missionários controlavam questões do cotidiano como o trabalho e a rotina religiosa”, aponta Luís Rafael.

Para ele, a revolta ainda aponta a crise da política de aldeamento na época colonial, mostrando fissuras num dos locais mais antigos de estabelecimento desta política, pouco tempo antes da expulsão dos jesuítas, que reconfiguraram as relações de poder nos locais. Os aldeamentos, destaca o historiador, eram dinâmicos e continham uma série de relações, com outras aldeias e vilas coloniais, entre os religiosos e indígenas, mas também com autoridades políticas coloniais, colonos e fazendeiros do entorno, interessados nas terras, no poder político e econômico e na mão de obra local.

Quadro de Ronaldo Moreira contrasta cotidiano de aldeamento com o de indígenas não-aldeados. Imagem do acervo da Casa da Cultura de Anchieta

Naquela época, aponta Leonardo Bourguignon, a Companhia de Jesus, ordem católica responsável pelos aldeamentos, dominava importantes setores da economia do sul do Espírito Santo, como a pesca, a pecuária, exploração de madeira e exploração, beneficiamento de produtos agrícolas como cana e algodão e controle de boa parte do comércio. A base da atividade econômica era o trabalho realizado pelos indígenas, que recebiam formação dos jesuítas para diversos trabalhos, pelos quais ficavam com apenas uma parte que os permitia subsistir.

Pela localização no litoral sul do Espírito Santo, próximo a Vitória e não muito longe do Rio de Janeiro, o exemplo da revolta era temido por poder inspirar outras rebeliões. “É a maior revolta indígena na história colonial do Espírito Santo e isso deixou as autoridades muito preocupadas. Há documentos que mostram a preocupação de que a rebelião se alastrasse até lugares como Reis Magos, hoje Nova Almeida, e Cabo Frio, no Rio de Janeiro, já que os indígenas tinham ligação com outros aldeamentos. Havia um medo de que Orobó pudesse virar uma nova Palmares”, diz em referência ao mais longo, resistente e conhecido quilombo da era colonial.

Algo que a historiografia ainda busca desvendar é como se deu o fim de Orobó. Há estimativas de que a comunidade tenha durado cerca de 10 anos.

Evento online debaterá ‘Ecos da revolta’

Nesta terça-feira (20), às 19h, um debate online transmitido pela Prefeitura de Piúma vai trazer como tema “Ecos da rebelião indígena de Rerigtiba e Orobó de 1742”, que vai contar com a presença de Luís Rafael Araújo Corrêa, Leonardo Bourguignon e Henrique Valadares, tendo como mediador Luiz Cláudio Ribeiro. O evento será transmitido pelo YouTube e Facebook mas também estão abertas inscrições por formulário online, que inclui emissão de certificado pela Pró-Reitoria de Extensão da UFES (ProEx).

O evento, aponta o professor Luiz Cláudio, busca socializar e aproximar os estudos da academia com a sociedade em geral, contribuindo para o conhecimento dos fatos históricos e também para a formação e capacitação de professores para que possam abordar o conteúdo a partir de uma perspectiva histórica.

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