Documentário ‘Toda noite estarei lá’ tem como protagonista Mel Rosário, que protesta do lado de fora de culto evangélico em Vitória
Antes do culto, em frente a uma igreja evangélica no Centro de Vitória, Mel Rosário se posiciona com seu corpo e um cartaz de protesto, confeccionado com a própria letra. Dois seguranças vigiam a porta e controlam o acesso. Os fiéis vão entrando, mas ela está proibida. Transexual, a cabeleireira trava há anos uma batalha política e judicial para ter direito ao que vem sendo considerado “serviço essencial” mesmo em tempos de pandemia: o acesso à igreja e seus cultos. Essa história real será contada em Toda noite estarei lá, documentário de longa-metragem dirigido por Tati Franklin e Suellen Vasconcelos, que deve ser finalizado ainda em 2021.
Mesmo tendo ganho na Justiça o direito de frequentar a Igreja no início de 2020, Mel voltou a ser proibida de frequentar os cultos, sob alegação de que por conta da pandemia só seria permitida a entrada de “membros”. “Mel não pode ser considerada ‘membro’ da igreja por ser uma mulher trans. Ela segue fazendo protestos em busca de justiça e os processos continuam tramitando”, explica Suellen.
Foi acompanhando seu cotidiano e suas lutas diárias que as cineastas buscaram um retrato mais íntimo com a personagem, muitas vezes filmando apenas entras as três, a entrevistada e as profissionais dividindo as tarefas na captação de imagem e de áudio. A entrada da igreja e o salão de beleza onde Mel trabalha, ambos no Centro de Vitória, a casa em que vive com a mãe em Jardim América, Cariacica, e os fóruns de justiça pelos quais se trava a disputa judicial estão entre os locais das filmagens. Um caso emblemático que envolve muitos temas, como luta por direitos, diversidade sexual, intolerância religiosa e outros.
“Nos interessa, enquanto realizadoras audiovisuais, contarmos histórias que questionem a realidade imposta que mata e oprime algumas vidas em detrimento de outras privilegiadas”, diz Tati Franklin. Ela aponta que o filme investe na autoficcionalização, na qual, entre o real e o imaginário, Mel interpreta a si mesma. “A proposta narrativa é que, apesar da violência que sofre diariamente contra sua existência, Mel possa viver no filme um sonho que ela não pode materializar na vida real. Assim ela pode contar a história que ela mesma deseja contar sobre si. É uma forma de recriar e projetar na tela os desejos para uma história de vida possível para aqueles que diariamente trocam sonhos por sobrevivência”.
Antes, o filme também passou pelo Brasil Cinemundi, encontro nacional importante no mercado cinematográfico. “Estamos na etapa de montagem do filme, talvez ainda voltaremos a gravar algumas coisas pontuais”, explica Suellen Vasconcelos.
Ela entende que a boa recepção nesses espaços aponta a relevância do projeto e o interesse do mercado e da audiência no tema e na histórica que são retratados no filme capixaba. “É importante pensar o cinema como patrimônio e registro de um tempo-espaço, e precisamos pensar que estamos filmando o Brasil de 2021, palco de uma onda conservadora e reacionária que impacta vidas como a de Mel Rosário”, diz Suellen sobre o aspecto emblemático da obra.
A relação de Mel Rosário com as câmeras começa quando Thiago Moulin a incluiu como uma das personagens do telefilme Impressões Urbanas, lançado em 2017 e que hoje faz parte da grade da TVE-ES. A força de Mel e sua história levou Thiago a conduzir uma produção exclusiva sobre ela, culminando no curta-metragem de mesmo nome, Toda noite estarei lá, exibido no Festival de Cinema de Vitória e Festival de Cinema de Brasília, tendo sua circulação precocemente interrompida diante da aprovação do projeto de longa-metragem, com recursos da Secretaria de Estado da Cultura (Secult) e da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Para o longa, Thiago convidou Tati Franklin, que acabava de lançar o curta-metragem Transvivo, que também aborda a questão da transexualidade, para dirigir a obra. Suellen Vasconcellos, que inicialmente atuou como assistente de direção, acabou assumindo a co-direção junto a Tati.