“É lamentável que isso aconteça em um período pandêmico”, critica Linda Morais, do Sindialimentação-ES
Funcionários da Chocolates Garoto, em Vila Velha, podem ter o tíquete-alimentação reduzido em quase 50% a partir do dia 1º de maio, Dia do Trabalho. O sindicato da categoria aponta que cerca de 1,2 mil trabalhadores podem ser afetados pela decisão da Nestlé, agravada por ocorrer durante a pandemia do coronavírus, ao mesmo tempo em que a multinacional, proprietária da fábrica capixaba, prevê aumento contínuo do crescimento das vendas para 2021.
A proposta da Nestlé era reduzir o benefício e, em contrapartida, oferecer indenização de R$ 9 mil, em parcelas, aos trabalhadores atingidos. No entanto, a partir do dia 1º de maio, o vale passaria de R$ 680 para R$ 350. Com a resposta negativa da classe trabalhadora, a empresa também não continuou as negociações do Acordo Coletivo de 2020, arrastando inclusive reajustes salariais.
“É lamentável que isso aconteça em um período pandêmico, quando os funcionários não pararam de trabalhar em nenhum momento, levantam cedo, vão pra fábrica, e colocam as famílias em risco”, repudia a presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Alimentação do Espírito Santo (Sindialimentação-ES), Linda Morais.
Diante da negativa, a Nestlé também deixou de cumprir com o pagamento da Participação nos Lucros e Resultados (PLR), que já tinha sido acordada com os funcionários. “Tratou como se fosse uma moeda de troca. Não faz sentido, porque são dois acordos diferentes. Há mais de 30 anos esses valores são recebidos”, critica Linda.
O sindicato decidiu levar o impasse à Justiça, com o objetivo de impedir a redução. A 6ª Vara do Trabalho de Vitória marcou uma audiência para o próximo dia 23 de junho. “O tíquete é um valor que complementa os salários, e ainda estamos em uma conjuntura econômica que tem reflexo no bolso de cada trabalhador, com a alta de preços em produtos básicos, como arroz e feijão”, lembra Morais.
O vice-coordenador-geral do Sindialimentações-ES, Júlio Cesar de Souza, ressalta que, apesar de ser um benefício, a proposta também representa uma queda na renda dos funcionários, já que o tíquete integra o salário total. “Em alguns casos, é uma perda de quase 20% do salário. A partir do momento em que se perde esse valor, será preciso tirar 20% do salário para fazer essa complementação”, enfatiza.
Dez anos de luta
Além de gerar impacto na renda, a medida de redução pode significar um retrocesso histórico de dez anos em direitos conquistados. “Esse valor não se recupera mais. Há nove, quase dez anos, o nosso tíquete era R$ 355, quer dizer, um valor bem próximo desses R$ 350 que a Nestlé quer pagar. Então, nós demoramos de nove a dez anos para conseguir chegar no valor de R$ 680, e a empresa quer fazer essa retirada”, explica Júlio César.
O sindicalista é funcionário da Garoto há 25 anos e viu esses direitos sendo adquiridos lentamente. “Vivi toda essa passagem, desde de quando não tínhamos tíquete, de quando passamos a ter, por luta nossa, dos processos negociais que nos fizeram chegar a esse valor, e agora, infelizmente, essa briga para garantir o que o nosso por direito”, enfatiza.
Para ele, a perda não é apenas monetária, mas mostra o esquecimento de uma luta árdua da classe nos últimos anos. “Fazendo um estudo básico, a gente vai demorar, de novo, de dez a onze anos, para conseguir voltar a ter o valor atual”, aponta.
Lucros só aumentam
Na proposta de redução do benefício, a Nestlé justifica que medidas como essas têm sido adotadas desde 2018 visando à competitividade dos negócios no Brasil. “Este ajuste precisa ser feito, para que outras medidas não sejam necessárias”, argumenta.
No entanto, não é isso que os números mostram. Em fevereiro de 2021, a Nestlé anunciou um crescimento orgânico de 3,6% em 2020, o maior nível dos últimos cinco anos. Na ocasião, o próprio CEO da multinacional, Mark Schneider, declarou que foi o terceiro ano consecutivo de melhoria no crescimento orgânico, rentabilidade e retorno sobre o capital investido. Neste ano, a multinacional espera um aumento do lucro básico por ação nas moedas constantes, de acordo com seu relatório empresarial.
Para Linda Morais, os funcionários foram responsáveis por esse crescimento e deveriam ser reconhecidos. “Mesmo em um momento tão difícil, tão delicado, o trabalhador garantiu o lucro da empresa. Para nós, é uma grande injustiça e falta de valorização”, ressaltou.
O vice-coordenador-geral do Sindialimentação-ES também considera a redução inaceitável. “O que a gente não consegue entender é o motivo, se a empresa, a cada dia, bate recordes e mais recordes de produção. Desde o início da pandemia, os seus acionistas ficaram mais bilionários e eles querem botar essa conta nas costas do trabalhador”, protestou Júlio César.
A Nestlé comprou a Garoto em 2002. Dois anos depois, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) chegou a se posicionar contra a fusão. O órgão investiga atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam colocar em risco a livre concorrência no Brasil. A empresa recorreu à Justiça e o processo passou por diversas tentativas de acordos para que a compra fosse aprovada. Até agora, porém, nenhuma decisão final foi dada pelo conselho.
Desumanização da economia e problemas sociais
Para o professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Maurício Abdalla, a tentativa de redução do benefício por parte da Nestlé não é um problema local. Ele afirma que o assunto extrapola o campo da economia e precisa começar a ser pensado sob a perspectiva do impacto humanitário.
“Esse caso mostra a maneira que o mundo se organiza, concentrando recursos nas mãos de pouquíssimas pessoas, que quanto mais aumentam o próprio lucro, mais aumentam a voracidade, a vontade de tirar do trabalhador”, enfatiza.
O professor acredita que o caso também é um reflexo das relações políticas dessas empresas, já que a decisão foi tomada com base na Reforma Trabalhista, aprovada em 2017. Na proposta de redução, a Nestlé afirma que “a legislação é clara que na falta do acordo coletivo, a empresa deverá conceder as condições da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], que dentre outras, não têm valor do tíquete-alimentação”.
“Isso mostra a mentira quando diziam que a Reforma Trabalhista era para gerar empregos. O que a gente vê são sucessivas notícias de trabalhadores perdendo direitos em função das mudanças legais, aumento do desemprego e deterioração do trabalho”, aponta.
Abdalla ressalta que a situação dos trabalhadores capixabas é o exemplo concreto de um fenômeno histórico: a despersonalização da economia. “Não importa o que eles comercializam, trabalham com números, colocando toda a humanidade à mercê dessa transação de valores. Aquela pessoa que fabrica o chocolate, para Nestlé, não é uma pessoa. É um conjunto de números. Se ela pode reduzir um benefício para ter mais lucro, ela irá reduzir, porque o capital não tem cara, rosto nem materialidade. Isso leva a humanidade a pensar para onde está indo”, questionou.