A vida é vela teimosa: o ousado enfrenta, o medroso contorna, o generoso acende, o egoísta apaga
Vamos driblando a labuta nossa de todo dia, ocupados demais para apreciar o grande privilégio de existir e habitar uma casa que não construímos nem compramos. Onde a vida que nos foi dada se consome devagar, sem fanfarras e estardalhaços, que nem vela queimando seu frágil pavio – treme a uma brisa mais forte, balança, bruxuleia. Volta a acender. O pavio é o tempo, curto e fugaz, em algum momento a vela deixará de existir. Para onde vai a chama quando a vela apaga? Mas enquanto acesa ilumina, porque essa é sua razão de existir.
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Cada qual com sua lamparina. Uns veem apenas sombras bruxuleantes na parede, outros veem a luz que desmancha as trevas. A vida é vela teimosa: o ousado enfrenta, o medroso contorna, o generoso acende, o egoísta apaga. Um vento fraco pode apagar a vela mais forte – era útil, deixou de ser. Outras a substituem, outras virão depois. Algumas há que iluminam o mundo, outras se restringem a iluminar o entorno – cada qual com sua sina.
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Somos todos velas – de luz forte ou mortiça, resistentes ao sopro insistente dos atropelos e injustiças. Ser vela que resiste aos embates e às intempéries, espalhando luz para que outros vejam, indiferente ao sopro dos ventos adversos, é privilégio de poucos. A boa vela leva o olhar mais adiante, mostra o rumo, cria pontes, ultrapassa a mente estreita, abre janelas e escancara o mundo. Onde o espetáculo é gratuito: ninguém paga ingresso para apreciar um pôr de sol, uma lua azul, uma onda no mar. Uma flor brotando no canteiro onde a semeou.
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Einstein disse que o tempo é relativo. Fiquei uma hora em pé na fila do cinema, sem reclamar, no lançamento de um filme badalado. Todos suportando estoicamente a espera, só pela vaidade de ver o filme antes dos outros. Meia hora na sala de espera do dentista, sentada, com ar refrigerado e televisão ligada, me parece um desrespeito ao meu canino.
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Relativa também é a expectativa de vida ao redor do mundo. Nos Estados Unidos é mais alta que no Brasil; no Canadá é mais alta que na Colômbia; na Inglaterra vivem mais que no Congo. Portanto, quem mora no país mais rico vive mais, ou pelo menos tem a chance de viver mais. É o que chamo de desigualdade estatística. O rico vive mais porque tem mais opções de exames preventivos, melhor alimentação, ar menos poluído, melhores salários. Ou não, pois tudo é relativo.
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Se Londres tem mais carros do que o Congo, tem mais mortes por acidentes com veículos, e se o Congo tem mais animais selvagens, morrem mais congoleses antes da hora do que ingleses. Feito vela teimosa, apaga e acende, vou queimando também esses fiapos de conversa que o vento espalha por aí: pavio longo e cera espessa. Se puderem iluminar alguns minutos na vida de um leitor ocasional, a vela continuará acesa. Cuidado: Se escancarar a janela a vela apaga.