Em 2013, Ibama já pedia alternativas locacionais. Em 2018, EIA-Rima não apresentou solução e foi reprovado
É extremamente esclarecedora a leitura do Parecer Técnico que reprova a proposta de duplicação da BR-101 no trecho que corta a Reserva Biológica (Rebio) de Comboios e sua Zona de Amortecimento (ZA), ao evidenciar que a recomendação de construir um contorno para proteger a unidade de conservação – que compõe o maior remanescente de Mata Atlântica de Tabuleiro do país – tem sido negligenciada pela concessionária ECO 101 desde o início do processo de licenciamento ambiental.
O parecer foi emitido em maio de 2018, um mês após a entrega, pela concessionária, do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Duplicação da Rodovia BR 101/ES/BA – Ofício nº 127/2018/Cotra/CGLIN/Dilic-Ibama – sendo assinado pelo chefe da Rebio, Eliton Lima, com contribuições de outros sete especialistas de universidades e órgãos ambientais com histórico de atuação na região.
Após exposição detalhada da legislação pertinente, bem como da história da rodovia e da reserva, o documento afirma que a reprovação da duplicação é necessária pois a obra, se concretizada, “trará danos irreversíveis, que não poderão ser mitigados e compensados, além de ser ilegal a realização dessa intervenção no interior da reserva”.
O parecer remonta até o ano de 2014, em que foi realizado um workshop internacional sobre o assunto, chamado no documento de “oficina de trabalho”, quando os pesquisadores presentes apontaram “um conjunto de medidas emergenciais” que deveriam ser implementadas visando reduzir os atropelamentos de animais silvestres no trecho que corta a Rebio e sua ZA, “até que a decisão definitiva sobre essa estrada na reserva fosse tomada”.
Esse relatório foi entregue ao Ministério Público Federal (MPF), que, em 2015, liderou um acordo com a ECO 101 e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), para implementação das recomendações. “As medidas foram detalhadas pela equipe de pesquisadores em várias reuniões nos anos de 2015 a 2018, para viabilizar a sua aplicação. Apesar de terem baixo custo econômico, nada efetivamente foi realizado”, afirmam os especialistas que assinam o Parecer Técnico da Rebio.
Ao contrário, ao apresentar o EIA, em abril de 2018, as alternativas locacionais apresentadas, afirma o parecer, “tratam-se de exercícios bastante simplórios, feitos de maneira absolutamente aleatória, nos quais não foram considerados aspectos ambientais ou estruturais dos trechos propostos (tais como estradas pré-existentes que poderiam ser utilizadas e assim reduzir drasticamente os custos do empreendimento e seus impactos)”.
Nesse sentido, prossegue o documento, “esses exercícios são absolutamente incapazes de permitir qualquer comparação racional de suas vantagens e desvantagens frente ao traçado atual. Assim sendo, as comparações entre os impactos positivos e negativos dos traçados alternativos frente ao atual devem ser totalmente desconsideradas, sendo imperativa a exigência de estudos de alternativas locacionais realistas”.
Corrigir um erro histórico
O custo ambiental negativo da duplicação na Rebio de Sooretama e sua ZA é muito elevado, sentencia o parecer, mesmo se consideradas as mitigações e compensações necessárias. O motivo é o real potencial expansão de toda a malha viária da região associada à expansão da BR-101 (outras estradas federais, estaduais e municipais), expansão de outros tipos de empreendimentos locais e outras formas de uso e ocupação do solo.
Por outro lado, reafirma, “a implementação do desvio, sem a ampliação da via atual, mesmo que utilizada por um baixo fluxo de veículos regional em velocidade controlada, traria um benefício muito maior para a Rebio Sooretama e seu entorno em termos de conservação do que uma rodovia ampliada e repleta de passagens de fauna”.
Os especialistas chamam atenção ainda para que “não se pode perder de perspectiva a oportunidade de corrigir o erro histórico da construção de uma rodovia federal, altamente movimentada, no interior dessa importante reserva no coração da Mata Atlântica. Dessa forma, duplicar essa rodovia poderá ser considerado um erro ainda maior”.
Reafirmando as recomendações feitas em diversas ocasiões e documentos desde 2014, o parecer conclui fazendo mais três recomendações: realização de estudo para o traçado do desvio da rodovia da BR-101 do cenário da Rebio de Sooretama e sua ZA; estudo do perfil dos usuários do trecho, que corta a Rebio de Sooretama e entono, do km 101 ao 124; e estabelecimento de uma série de medidas emergenciais.
Essas medidas se organizam em doze grupos temáticos: Limite de Velocidade e Redutores de velocidade; Túneis; Cercamento; Passagens Aéreas; Remoção das Árvores Frutíferas Exóticas Atrativas para Animais na Rodovia; Videomonitoramento; Monitoramento dos Animais Atropelados; Estrutura para Socorro de Animais Atropelados; Limpeza e Remoção de Lixo; Comunicação Social e Campanhas Educativas dos Usuários da Rodovia; Pesquisa Científica; e Envolvimento dos Membros das Comunidades Locais e dos Técnicos das Reservas e Pesquisadores que Atuam na Região no Planejamento e Execução de todas as Ações, com supervisão da Rebio de Sooretama.
A solução é pelo Oeste
Um dos colaboradores do parecer, o doutor em Biologia Evolutiva e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Aureo Banhos, acrescenta, neste maio de 2021, fatos anteriores ao workshop de 2014 e posteriores à entrega do EIA e do parecer de reprovação da duplicação.
Em 2013, lembra, o Termo de Referência (TR) do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já recomendava a realização de estudos de alternativa locacional para o trecho da BR que corta a área protegida. A concessionária, no entanto, “não se debruçou sobre isso”, avalia, reafirmando o conteúdo do parecer de 2018.
Em 2019, relata o cientista, uma audiência pública realizada em Linhares pelo Ibama reforçou a necessidade do desvio, a partir das manifestações dos presentes, que incluíram moradores da cidade, prefeito municipal, vereadores, deputados, pesquisadores e analistas do Ibama.
E em 2020, conta, o novo Plano de Manejo da Rebio incorporou a necessidade do desvio, estabelecendo textualmente que o projeto de duplicação deve “prever e executar os estudos relativos à redefinição do trajeto da BR-101, visando sua retirada de dentro da RBS [Reserva Biológica de Sooretama] e ponderando a minimização dos impactos ambientais na UC e região”.
Aureo Banhos acrescenta ainda que o entendimento consensual entre os pesquisadores que ao longo desses anos têm trabalhado em conjunto com o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra a Reserva, é que o desvio deve ser feito a oeste da rodovia.
A orientação se baseia em dois motivos principais: a preservação do também importantíssimo Mosaico de Unidades de Conservação da Foz do Rio Doce e consequentemente o Corredor Ecológico ao qual ele se associa, localizado a leste da BR-101; e o fomento ao desenvolvimento socioeconômico da região oeste, que concentra comunidades de baixa renda per capita e elevada degradação ambiental.
O Mosaico de UCs e o corredor ecológico incluem a Floresta Nacional de Goytacazes, as matas de aluvião do Rio Doce, os parques naturais que protegem as restingas de Degredo e suas famosas orquídeas e bromélias, que se localizam a leste da Reserva Natural da Vale, em direção ao litoral linharense, se estendendo até a Reserva Biológica de Comboios, em Regência, um dos principais sítios reprodutivos de tartarugas marinhas do Brasil e importante polo de ecoturismo.
Deslocar o contorno da BR-101 para essa região, adverte Aureo, “não é interessante do ponto de vista da biodiversidade e sistemas ecossistêmicos”. Já o traçado a oeste é o ideal, pois pode “ajudar a alavancar o desenvolvimento socioeconômico na região, que está tão desertificada e precisando de geração de renda”, além de favorecer a conexão da BR-101 com a BR-116, que já está sendo providenciada por uma nova rodovia em construção, chamada de 342, que faz a ligação dessas duas BRs. Inicialmente, conta o pesquisador, a 342 passaria dentro da Rebio, mas já teve seu traçado alterado para Jaguaré. “Seria uma oportunidade de aproximar a rodovia 101 dessa 342 e da 116 também”, destaca.