Local abrigaria o Museu Dirceu Cardoso. Arquiteto aponta possível erro técnico da empresa responsável
Quando parecia perto de se concretizar, um sonho desmoronou. Durante obras de restauro, uma casa de 1923 desabou em Muqui, no sul do Estado, onde o Sítio Histórico é tombado como patrimônio estadual desde 2012. No imóvel iria funcionar o Museu Dr. Dirceu Cardoso, reunindo um acervo da história do município, que viveu tempos de prosperidade graças ao ciclo do café no início do século 20.
Composto por duas casas contíguas, conhecidas como Casas Amarelas, localizadas na Rua João Jacinto, o imóvel pertence à Associação de Ex-Alunos do Colégio de Muqui, que coordena o projeto do museu. Da maior das casas restou apenas a fachada, sendo que as paredes que caíram possuíam pinturas internas antigas de valor histórico. A casa menor continua de pé. Há também um amplo espaço externo na parte de trás dos imóveis.
Um especialista em restauração aponta que a destruição grave do patrimônio pode ter sido ocasionada por erro técnico da empresa responsável pelas as obras, contratada por meio de licitação pela Prefeitura Municipal de Muqui (PMM) com recursos repassados em convênio pelo governo do Estado, que totalizam quase R$ 1,2 milhão.
Além disso, os registros fotográficos feitos por moradores mostram que a empresa removeu estruturas da casa feitas por blocos de pedra de grande dimensões, substituindo por concreto armado. “Esta decisão técnica também é completamente equivocada, não encontrando nenhum respaldo nos manuais de restauro”, analisa Genildo.
A licitação feita e o contrato com a empresa Lance Construtora Eireli, ambas em novembro de 2020 durante a gestão do então prefeito Renato Prúcoli (PTB), falam em reforma do imóvel e não em restauro, que Genildo considera que seria o adequado para o caso e exigiria a contratação de um arquiteto com acervo técnico para atuar em obras de restauro.
Em reunião em janeiro, a empresa teria manifestado a necessidade de derrubar as paredes por considerar que estavam comprometidas. A reportagem tentou contato com a Lance, empresa sediada em Castelo e que possui ao menos outras cinco obras sendo realizadas para a prefeitura de Muqui, mas não conseguiu retorno por telefone. Por se tratar de imóveis tombados, qualquer alteração na estrutura, mesmo que ela estivesse condenada, precisa ser apresentada e aprovada pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC).
A arquiteta e urbanista Daniela Bissoli, representante da Câmara de Patrimônio Arquitetônico, Bens Móveis e Acervos do CEC, informa que o conselho estava ciente das obras e já havia realizado visita ao local, atestando a situação precária do imóvel e o risco de desabamento durante as obras. O imóvel teria perdido parte do telhado, em períodos anteriores de grandes chuvas, o que acelera a deterioração da construção.
Porém, a representante no conselho ainda não sabia que a casa estava sem as paredes até ser informada pela reportagem. Foi apenas no dia 24 de maio que a prefeitura soube do ocorrido por meio de uma servidora que fazia vistoria em outro local nas proximidades. Os proprietários da casa tampouco haviam sido informados. A PMM comunicou então à Secult sobre a situação, que teria ocorrido semanas antes. “A Secult e o Conselho Estadual de Cultura acompanham tecnicamente o andamento da obra, tendo ciência das dificuldades na execução e da fragilidade do imóvel”, disse a secretaria estadual.
Próximos passos
Como o arruinamento já está dado, restam duas questões centrais por resolver. Uma é o esclarecimento sobre o ocorrido. Houve algum tipo de negligência que provocou a queda, o que poderia envolver responsabilização na contratação, execução e fiscalização da obra? Ou foi um feito tecnicamente inevitável? Ou uma ação proposital? Nesse caso, com ou sem consentimento do CEC?
No momento, as obras encontram-se paralisadas para averiguação do ocorrido. “Nosso objetivo é que se retome na próxima semana para evitar um mal maior que seria perder a outra casa, que também está sem telhado e sujeita às intempéries”, afirma a secretária municipal de Turismo e Cultura, Joelma Consuelo. A Secretaria de Estado da Cultura (Secult) solicitou um relatório técnico detalhado da empresa e da Prefeitura de Muqui para ter maior clareza sobre o que pode ter causado o ocorrido.
A outra questão é o que fazer daqui para a frente. “A intenção é recuperar a volumetria e manter os aspectos que restaram originais, para que as casas amarelas possam sediar o Museu Dirceu Cardoso”, afirmou em nota a Secult. “Os fatos ainda estão sendo apurados. Mas a casa terá que ser reconstruída e isso tem que ficar registrado para que sirva de exemplo e não aconteça no futuro a mesma história”, diz a secretária de Muqui.
Genildo Coelho mostra preocupação sobre como seria feito o processo de reconstrução. Ele apresentou ao Conselho Municipal de Cultura um documento com as razões pela qual considera que não é adequada a reconstrução pura e simplesmente. “Penso que esta ação deveria antes passar por uma discussão tanto no Conselho Estadual de Cultura como também na comunidade, que é a real detentora deste patrimônio. Uma reconstrução geraria um pastiche, uma mentira, e em patrimônio esta atitude não é correta. Não podemos convidar um visitante para entrar em uma ‘nova casa antiga’, ou em uma casa que imita uma construção antiga”, afirma. O tombamento visa a preservar não apenas o imóvel mas também os materiais e formas e técnicas originas de sua construção, o que não pode ser recuperado após o desabamento.
De qualquer maneira, o sonho de ver o local funcionando e trazendo a memória da cidade deve acabar sendo retrasado. Sandra Lourenço, responsável pelo Museu Dr. Dirceu Cardoso, lamenta o ocorrido. “Minha mãe tem 96 anos de idade, foi ex-aluna do Colégio de Muqui e vinha lutando por essa sede há muito tempo. Sonho que ela possa ver o museu inaugurado”, conta.
Tendo assumido desde 2007 a luta iniciada pela mãe, ela cobra mais que tudo uma solução para que o museu possa se tornar realidade o quanto antes seja possível, já que o amplo acervo já recolhido encontra-se guardado e pode se deteriorar. Dirceu Cardoso, homenageado com o nome do museu, foi advogado, diretor do Colégio de Muqui, prefeito do município, deputado estadual, deputado federal e senador da República. “É uma homenagem a ele, mas sobretudo a intenção é que seja um museu da cidade, sobre a história de Muqui”, diz Sandra Lourenço.