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Turismo comunitário mostra natureza e cultura nos morros de Vitória

Conheça quatro projetos criados por moradores das comunidades para mostrar um lado pouco frequentado por visitantes

O turismo tradicional costuma divulgar e explorar com maior força as áreas consideradas “nobres”, frequentadas geralmente por classes médias e altas. Porém, outras localidades também possuem diversos atrativos. Nos morros de Vitória, projetos comunitários vêm tentando apresentar os aspectos culturais e naturais de comunidades que costumam ser estigmatizadas pela mídia tradicional.

São Benedito, Jesus de Nazareth, Fonte Grande e Santa Tereza são algumas delas na capital onde moradores têm investido na construção de projetos para receber visitantes. Em comum, todos possuem, em suas partes mais altas, belas vistas exuberantes de Vitória e cidades vizinhas. Mas para chegar lá em cima, há percursos repletos de história e cultura que os projetos querem apresentar.

O mais interessante é que os criadores das iniciativas se conhecem e uns apoiaram os outros na criação e desenvolvimento de suas propostas. Vai se construindo assim, apesar da falta de atenção do Estado sobre esse potencial, uma rede de possibilidades de um turismo surgido desde comunidades não só invisibilizadas como espaços de riquezas e belezas, mas também vistas como locais de violência e medo.

“Vimos para nossa comunidade o potencial da área de turismo para quebrar preconceitos, de que o morro é perigoso, que só tem vagabundos. Mostramos a paisagem, o comércio local, a culinária. As pessoas querem ouvir as histórias”, diz Fernando Martins, um dos pioneiros desse tipo de atividade na cidade.

Fernando com visitantes em Jesus de Nazareth. Foto: Divulgação/ Tour no Morro

Passeio com morro e praia

Fernando começou em 2012 realizando ações junto à associação de moradores do seu bairro, Jesus de Nazareth. Ele já promovia atividades como rodas de samba e outros eventos, que atraíam pessoas para a comunidade. Depois de iniciar com os passeios, realizou um curso de guia de turismo no colégio Gomes Cadin. “Me apaixonei pela história, pela geografia, adquiri novos conhecimentos. Descobri que nosso Estado é rico e nossa ilha também”, conta. Não conseguiu fazer a sonhada faculdade de turismo, mas participou de outros cursos para se aperfeiçoar na área e visitou várias vezes o Rio de Janeiro para conhecer projetos que trabalhavam com turismo nas favelas, algo mais desenvolvido por lá. Inspirou-se na experiência carioca do Favela Tour para criar o Tour no Morro, já que esta palavra é mais utilizada no Espírito Santo.

Para quem não conhece, Jesus de Nazareth é um um dos morros com a vista mais privilegiada da capital e uma pequena praia na parte baixa. No topo, onde estão instaladas torres de energia, pode-se ter uma vista direta da Terceira Ponte e Convento da Penha, em Vila Velha, e de boa parte da cidade de Vitória. Ali, Fernando gostaria de ver a construção de um mirante e um portal, que servisse como moldura para as fotos olhando para os monumentos mais conhecidos da paisagem capixaba. É comum tanto tours de dia até o local, como aqueles para ver o por de sol e a chegada da lua, curtindo também a beleza da noite no lugar.

Antes de chegar no topo, porém, o encontro para o Tour no Morro começa na parte baixa da comunidade com um café da manhã e passa por grandes murais de graffiti feitos por artistas da comunidade que registram entre outras coisas, uma das primeiras moradoras da comunidade.

A visto alto do morro pode ser curtida de dia ou de noite. Foto: Divulgação/ Tour no Morro

Fernando conta que Jesus de Nazareth foi povoado a partir das obras de aterros dos manguezais no entorno na década de 1960, quando os trabalhadores da construção foram se instalando ali. Essa história ele vai contando ao longo do percurso com os visitantes, mostrando também a produção de artistas e artesãos do bairro, que pode ser apreciada e comprada pelos turistas, que também podem saborear a famosa moqueca com vista privilegiada no Bar do Bigode.

“É uma experiência diferente, que as pessoas querem conhecer. Quem passa no asfalto não imagina tudo que temos. Os moradores dos prédios de frente não têm ideia de como é. No tour vai conhecer a laje do morador, ver a paisagem. É um turismo de experiência”, explica Fernando.

A pandemia levou o projeto a paralisar as visitas durante os períodos críticos. Mesmo assim houve procura, já que se trata de um passeio próximo para quem mora na Grande Vitória e que é feito ao ar livre e com os devidos cuidados sanitários. Fernando destaca que apesar da redução do fluxo, durante a pandemia o projeto conseguiu chamar atenção de veículos da imprensa, contribuindo para divulgar a comunidade e mostrar as características que a fazem tão especial.

O Tour no Morro é parceiro também de diversas ações que vão desde a limpeza da praia do bairro e de pontos de acúmulo de lixo, assim como de atividades como campeonato de pipas e uma corrida disputadas pelas escadarias de Jesus de Nazareth. No futuro, Fernando pretende que a comunidade seja ponto de partida para passeios de caiaque pela baía de Vitória.

Um passeio até o farol mais alto do Brasil

Do alto de Jesus de Nazareth pode-se vislumbrar outro morro alto, o São Benedito, no qual destaca-se o farol localizado em maior altitude no Brasil, 196 metros acima do nível do mar. É lá que foi criado o projeto Tour do Farol, coordenado pelos jovens Juliano da Silva Balbino e Laiza Costa. Morador do Bairro da Penha, Juliano iniciou o projeto quando fazia curso de Guia de Turismo pelo Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes),

O projeto começou em 2018 a partir de um edital voltado para as comunidades do Território do Bem, um conjunto de bairros da região. “Resolvi então criar um coletivo que trabalhasse turismo de base comunitária”, diz Juliano, que juntou colegas do curso e da comunidade para formar o Tour no Farol, um dos coletivos que hoje integram o Fórum da Juventude do Território do Bem (FJTB). O primeiro recurso foi usado para mapear as rotas de acesso até o farol e promover melhorias no trajeto, como a pintura de muros e escadarias e limpeza de caminhos e terrenos que acumulavam mato e lixo.

Nesse processo, eles identificaram artesãos e outros apoiadores que estão na rota. “Todas pessoas que levei ficaram impressionadas com a vista e também com a recepção dos moradores, que chegam a convidar para entrar em suas casas para tomar um café e ver a vista dos seus terraços”, conta o guia.

Juliano Balbino criou o Tour no Farol no Território do Bem. Foto: Divulgação/ Tour no Farol

O passeio que dura entre duas e três horas geralmente começa em Itararé, na parte baixa, ou no ponto final do Bairro da Penha, com subida até o farol e descida pelo bairro de São Benedito. Lá em cima, além de uma vista de 360 graus de Vitória, os visitantes recebem informações sobre a história da construção da comunidade. No caminho, alguns pontos ajudam a mostrar o início ocupação desse complexo de morros de Vitória, como ruínas da antiga lavanderia e o Carvoeiro, um monumento que hoje encontra-se pouco cuidado e cercado de mato.

Até antes do início da pandemia, o Tour no Farol recebeu visitantes principalmente da Grande Vitória e também chilenos que moram no Espírito Santo. Mas apesar dos atrativos, não foi fácil manter o projeto com continuidade. Em alguns momentos de acirramento de conflitos entre facções e delas com a polícia, as atividades ficaram temporariamente suspensas. A pandemia também obrigou a paralisar as visitas. Mas o plano é retornar em breve.

Juliano reclama da falta de manutenção e atenção em relação ao farol, que é de responsabilidade da Capitania dos Portos. No local, o deck que tinha sido construído por um projeto comunitário para servir de mirante acabou sendo desfeito por pessoas sem teto que usaram para se abrigarem. Ele acredita a consolidação do projeto de turismo comunitário com visitas frequentes ajudaria a manter o local mais cuidado. Deseja que no alto do morro fossem colocados mobiliários como bancos e mesas para transformar o espaço numa área de vivência não só para turistas mas especialmente para os moradores da região.

Horta e hostel no morro

Outro lugar que tem recebido visitantes é o bairro Santa Tereza e o Morro do Cabral. Hoje líder comunitário, Jean dos Santos, mais conhecido como Joca, começou a promover passeios na região pelos idos de 2010, a partir da memória dos mais antigos sobre o costume que havia nas décadas anteriores de que os moradores subissem para a parte mais alta do morro para pegar frutas e fazer piqueniques.

Mas foi entre 2016 e 2017 que passou a fazer a rota com mais frequência, promovendo caminhadas em datas especiais como Dia da Árvore, Dia do Meio Ambiente, já que a recuperação de nascentes e o reflorestamento da região de amortização com o Parque Estadual da Fonte Grande passou a fazer parte do projeto. Hoje, na região alta do morro, funciona uma horta comunitária e o cultivo de abelhas nativas sem ferrão, projetos que podem ser visitados durante os passeios.

A divulgação sempre se deu mais que tudo na comunidade e também pelo boca a boca para pessoas de outras localidades. Mesmo assim, o tour na região chegou a receber estrangeiros, como o caso de membros das seleções de futebol sub-17 da Austrália, França, Estados Unidos e Hungria, que vieram disputar o mundial da categoria no Espírito Santo em 2018.

Joca (ao centro) com moradores e turistas estrangeiros no alto do Morro do Cabral, em Santa Tereza. Foto: Divulgação

Atualmente, a casa de Joca abriga o projeto English Made In Favela, no qual uma professora voluntária realiza aulas gratuitas de inglês para moradores locais, buscando entre outras coisas, ajudar a prepará-los para receber turistas estrangeiros. Em sua casa, ele também está criando um hostel, albergue turístico, com capacidade para receber até 15 pessoas que queiram se hospedar dentro da própria comunidade. Ali também vai juntando elementos para fazer um “memorial do bairro”, reunindo aspectos da história e obras de arte locais. Mas para além de sua casa, o projeto também realiza limpeza das trilhas e pintura das escadarias de Santa Tereza. O tour passa sempre por dentro da comunidade, com possibilidade de paradas para alimentação vendida por moradores.

Recentemente, Joca foi nomeado como gestor do Parque Estadual da Fonte Grande, sendo o primeiro morador da região a assumir o posto. É pelas trilhas que bem conhece que ele vai e volta ao trabalho. Sua relação com o parque se estreitou a partir de 2018, quando realizou o curso de condutor de ecoturismo, que certifica os participantes para promover acompanhamentos dos turistas nas trilhas.

O parque tem 218 hectares em meio à Mata Atlântica em pleno coração da cidade, contando com quatro mirantes e ampla vista para diversos pontos de Vitória e adjacências. Quer ampliar a relação das 22 comunidades do entorno com o parque, tanto com a continuação da formação de condutores turísticos, que possam com isso melhorar suas rendas, como para outra atividades, como a formação de brigadas com moradores para o combate a incêndios na região.

Trilhando na Fonte Grande

Não muito longe de Santa Tereza, está o morro da Fonte Grande, localizado no entorno do Centro de Vitória. Lá aconteceu no final de 2018 a primeira edição do Trilhando nas Fontes, criado pelos moradores Rosemary Walcher e Peterson Rio Branco. A ideia inicial foi realizar a caminhada para arrecadar brinquedos e fundos para as ações de Natal para as crianças da comunidade. “Deu tão certo que conseguimos comprar material escolar para alguns já que se aproximava do início do ano letivo”, conta Rosemary.

Foram realizadas duas edições, com grupos de 50 pessoas, percorrendo a comunidade e suas trilhas até o Parque Municipal da Fonte Grande. Agora, após a paralisação, o Trilhando nas Fontes busca se estabelecer como um projeto de turismo comunitário, se preparando para uma retomada em breve, assim que as condições sanitárias melhorarem.

O roteiro traz elementos históricos da comunidade, que são sempre vinculados com questões naturais, pela proximidade com a mata e pela presença de diversas fontes de água, que dão nome ao bairro e  que foram importante fonte de abastecimento para a cidade, além de terem provido o trabalho das lavadeiras, que chegaram a ser a principal forma de geração de renda das mulheres da comunidade décadas atrás. A Fonte de São Benedito, que ainda está preservada, é uma das primeiras paradas do tour do bairro.

Imagem de uma das edições da trilha coletiva na Fonte Grande, em 2018. Foto: Trilhando nas Fontes

Também é uma região conhecida por ser berço do samba capixaba, tendo como ponto de encontro e partida do projeto a praça que serve de quadra para os ensaios da Unidos da Piedade, a primeira escola de samba do Espírito Santo, que tem sua história contada pelos guias. A primeira casa do célebre sambista Édson Papo Furado na comunidade também é um dos pontos de parada e aprendizado.

O caminho leva até os mirantes do parque, de onde se observa belas paisagens desde o Morro do Urubu. No local estão também o campo de futebol Benjamin Mathias, o mais alto de Vitória, próximo à mata e às torres de TV que marcam a região, além da Fazenda dos Lírios e a Escadaria do Céu, construída pela própria comunidade. O fim é na tradicional Rua Sete, no Centro, importante ponto de lazer da cidade e também para a comunidade da Fonte Grande.

“Não é preciso sair de Vitória para fazer turismo. É uma cidade muito bonita, com lugares interessantes. É possível conhecer nossa cidade mais de perto a partir da história da comunidade”, afirma Rosemary. Mas ela aponta a necessidade de obras, que podem tanto proporcionar melhores condições para os moradores como também criar um ambiente mais adequado para a recepção de turistas.

Caminhando é a única forma real de conhecer um local profundamente. E é do alto que se pode enxergar mais longe. Literal ou metaforicamente.

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