Imbróglio chegou ao Supremo, por meio de HC sob a relatoria do ministro Edson Fachin
O crime de estelionato até o advento da Lei 13.964/19, conhecida como pacote anticrime, era objeto de ação pública incondicionada, ou seja, o Ministério Público, titular da ação penal, não necessitava da expressão de vontade da vítima para judicializar a questão, exceto nas hipóteses previstas no art. 182 do mesmo diploma legal, que em suma prevê que o agente delituoso seja cônjuge, irmão, tio ou sobrinho, havendo no caso dos dois últimos a necessidade de coabitação.
Entretanto, a Lei 13.964/19 acrescentou ao art. 171 do Código Penal, o parágrafo 5º, que prevê que o crime de estelionato “somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: I – a Administração Pública, direta ou indireta; II – criança ou adolescente; III – pessoa com deficiência mental; ou IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz”.
A partir de então, a ação penal decorrente de crime de estelionato passou a depender de representação da vítima, excetuando-se as circunstâncias acima transcritas.
Ocorre, porém, que a Lei 13.964/19 não fez nenhuma alusão aos processos já em andamento e, em assim sendo, existe uma grande discussão acerca da retroatividade ou não dos efeitos dessa norma.
No geral, a lei não retroage no tempo, exceto quando se trata de lei penal, em que deve ser aplicada de forma mais benéfica para o réu.
Entretanto, ação penal é um tema de natureza mista, ou seja, alcança matéria processual e material penal, porquanto é mais do que razoável pensar que deve retroagir no tempo para o fim de beneficiar o réu.
Clareando a fala acima, salienta-se que o benefício do réu consiste no fato de que ao aplicar a retroatividade da lei, a vítima dirá se tem interesse ou não na ação penal pública, agora condicionada à sua representação.
Em rápida analogia, há de ser lembrado que a Lei 9.099/95, em seu art. 91, previu expressamente que nos casos em que passou “a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência”. Observa-se, aí, que o legislador teve a intenção de exigir que o ofendido expressasse sua vontade por meio de representação dentro de determinado lapso temporal, sob pena de decadência.
Já no texto da Lei 13.964/19, o legislador não expressou intenção da mesma natureza e isso, ao revés de muito entendimentos, não é crível que seja interpretado como uma restrição de direito tanto da vítima quanto do agente.
A rigor, mesmo nos processos nascidos antes da vigência da Lei 13.964/19, é necessário que a vítima de estelionato seja instada a oferecer representação, salvo nas hipóteses das excepcionalidades previstas no parágrafo 5º do art. 171 do Código Penal e quando houver nos autos a manifesta intenção da vítima quanto à ação penal, ainda que na fase de inquérito.
A jurisprudência, até aqui, tem firmado entendimento no sentido de que a lei sob comento não retroage e que a denúncia oferecida anteriormente à sua vigência é um ato jurídico perfeito, sobretudo por ter sido praticado sob a égide de lei anterior.
Mas o imbróglio chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do Habeas Corpus (HC) 180421, que está sendo julgado pela 2ª Turma, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, que votou pela retroatividade da Lei 13.964/19 em ações penais já em curso, entendimento este já aderido pelos ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques, embora este, em seu voto, tenha fundamentado no sentido do trancamento da ação penal por ter entendido ser a denúncia inepta.
Rodrigo Carlos de Souza, sócio e fundador de Carlos de Souza Advogados, Secretário-geral adjunto e corregedor-geral da OAB/ES, vice-presidente da Comissão Nacional de Compliance Eleitoral e Partidário da OAB e diretor do Cesa – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Seccional Espírito Santo).
Letícia Stein Carlos de Souza, acadêmica e estagiária de Direito.