Reunindo educadores e parlamentares sensíveis ao tema da Educação no Espírito Santo, a Comissão de Educação da Assembleia Legislativa realizou uma audiência pública na noite dessa terça-feira (22) sobre as inverdades, os perigos e as ilegalidades que sustentam o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), resultado de uma parceria entre os ministérios da Educação e da Defesa.
Com o tema “Escola Livre para todos (as) – Não à Escola Cívico-Militar!”, a audiência foi um pontapé para um amplo debate sobre o assunto, estratégia utilizada por uma comunidade escolar da cidade paulista de Campinas, em São Paulo, para barrar a implementação de uma unidade militar.
No Espírito Santo, o programa caminha de forma autoritária, afirmaram participantes da audiência. Até o momento, duas escolas municipais já foram militarizadas, sendo uma em Viana, em 2020, e outra em Cariacica, neste ano, havendo promessa de mais três para 2022, em Vitória e novamente em Cariacica e Viana.
Um relato de autoritarismo do programa foi feito pela professora Israel Bayer, da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Professor Cerqueira Lima, escolhida pela prefeitura de Cariacica para se tornar cívico-militar a partir de janeiro de 2022. Segundo ela, a decisão foi tomada sem que houvesse diálogo, com a consulta pública tendo sido realizada pela Secretaria Municipal de Educação de forma direcionada a um público restrito, sem transparência na divulgação do resultado.
“A direção e os professores foram comunicados que a escola seria transformada em (unidade) cívico-militar. Não houve direito à discussão. Após isso, foi feita a consulta pública sem aprofundamento com a comunidade escolar, sem debate, sem direito ao contraditório. Uma consulta que foi questionada porque não houve transparência em [relação a] quem estava votando”, disse.
Numa análise mais abrangente dos processos de militarização escolar, a educadora Sumika Freitas, integrante do Comitê Capixaba da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, conta que o que acontece em Cariacica e outras cidades capixabas é a tônica do programa como um todo. “O projeto de militarização das escolas ataca o direito à educação e à participação. Não há um debate coletivo. Temos de ter muita atenção, porque nossas crianças, nossos adolescentes, nossos adultos das escolas precisam ser ouvidos”, conclamou.
Na mesma toada, a professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenadora do Laboratório de Gestão da Educação Básica (Lagebes/Ufes), Gilda Cardoso, destacou o ataque à cidadania impingido pelo programa, que é inconstitucional e ilegal, pois não está previsto nem na Constituição Federal e nem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que regem a Educação no Brasil.
O ambiente democrático das escolas, ressaltou, é inviabilizado pela imposição de um código de conduta militar. “A função precípua da educação, segundo nossa Constituição, é formar para o exercício da cidadania, apoiada num tripé, que são os direitos políticos, o que engloba ter voz nas decisões das escolas, direitos civis, que são as liberdades individuais, e os direitos sociais. A escola é a responsável, segundo a Constituição, por assegurar esses direitos e é o primeiro lugar de socialização onde esses direitos devem ser trabalhados”, expôs.
Também reforçando a ausência de debate, diálogo e consulta efetiva sobre a militarização, Mariléia Dionísio, do grupo Não à Militarização na Escola (NaME), mencionou o manifesto em que o programa é mostrado como prejudicial à pluralidade e democracia das escolas públicas, sendo baseado na lógica da “disciplina e obediência, sem reflexão e criticidade, da hierarquização que pactua com abuso de poder, da intimidação, da ameaça, do punitivismo, do medo, de apologia às armas e seu uso [de forma] arbitrária e indiscriminadamente”.
Institutos federais como referência
Proponente da audiência pública, a deputada Iriny Lopes (PT) citou exemplos de escolas cívico-militares já em funcionamento no estado de Goiás que ratificam a preocupação dos educadores. Nelas, citou a parlamentar, é proibido por exemplo o uso de “armações de óculos de cores esdrúxulas ou unhas consideradas fora do padrão”, consideradas infrações leves.
Já o uso de barba, bigode, costeletas, cabelos tingidos com cores extravagantes e cortes de cabelos avessos aos padrões são enquadrados como transgressão de nível médio. A deputada pontuou ainda que, pelo código de conduta das escolas militares, casos em que há recusa de cantar o Hino Nacional ou prestar continência são considerados como transgressões graves e os alunos estão passíveis de expulsão.
“Existe um autoritarismo totalmente avesso aos princípios constitucionais e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Apesar da insistente afirmação que a gestão pedagógica e administrativa são de competência das secretarias de educação locais, na prática são os militares que definirão os conteúdos dessas unidades, o que nos preocupa sobremaneira”, ponderou Iriny.
Acompanhando a colega proponente, Bruno Lamas (PSB), que preside a Comissão de Educação, e Sergio Majeski (PSB), membro efetivo do colegiado, declararam não apoiar o programa federal de militarização das escolas e propuseram realizar novas reuniões para ampliar o debate com a comunidade escolar do Espírito Santo.
Já o deputado federal Helder Salomão (PT) enfatizou a necessidade de, em contraposição à militarização, prover a valorização e ampliação do modelo dos institutos federais, conforme ocorreu durante a gestão petista de Lula e Dilma Roussef.
“Os institutos federais no Brasil são centros de excelência. Fico encantando com a revolução que (eles) promoveram, as oportunidades que criaram e com o ensino público de qualidade que é oferecido nessas unidades. Ao invés de valorizá-las, o governo quer criar algumas poucas unidades de escolas cívico-militares, quando deveria estar trabalhando para ampliar essa experiência fantástica”, disse Helder, criticando o fato de que “hoje o orçamento das universidades e dos institutos federais estão sendo duramente atacados” e que “em 2021, pela primeira vez, temos o orçamento da educação brasileira menor do que o das Forças Armadas”.