Caminho da poeta polonesa para o Nobel foi pavimentado na esteira de várias premiações
A Polônia, mesmo com uma língua difícil para o leitor estrangeiro, repleta de encontros consonantais desafiadores para quem se debruça sobre isto, é um país que produziu ótimos poetas, ganhadores do Prêmio Nobel, como, além de Wislawa Szymborska, em 1996, o laureado Czeslaw Milosz, em 1980.
Wislawa Szymborska tem uma poesia que se instaura como um tipo de reflexão filosófica, e tem um caráter sintético, fruto de um trabalho de escrita meticuloso, tal um ourives ou escultor que não se apressa, pois há os poetas que escrevem com pressa, e eu me incluo nestes, mas Wislawa tem que reescrever até chegar a seu ponto de bala. A simplicidade com profundidade filosófica é exatamente a síntese deste trabalho de depuração constante em sua poesia.
Wislawa Szymborska (pronuncia-se mais ou menos Vissuáva Chembórska) nasceu em 1923, no vilarejo de Bnin, hoje parte de Kórnik, uma pequena cidade próxima a Poznán. Em 1931 a família mudou-se para a Cracóvia, onde a poeta passou a viver. A poeta estudou Sociologia e Literatura na Universidade Iaguielônica de Cracóvia, sem se formar, no entanto. Se casou em 1948 e se separou em 1953 de sua união com o poeta Adam Wlodek.
A poeta, em meio a era stalinista, tem seus dois primeiros volumes de poesia no espírito deste tempo político, com temas que rezavam a cartilha desta ideologia, que são os livros de poesia: Por isso vivemos, de 1952, e Perguntas feitas a mim mesma, de 1954. Posteriormente, com a morte de Stálin e a distensão do regime polonês, tem-se a recuperação da voz individual dos poetas, não mais diluídos numa pretensa universalidade ideológica.
Em 1957, por sua vez, Wislawa Szymborska publicou Chamado por Yeti, que ela considera sua verdadeira estreia literária, já com sua personalidade poética se consolidando, seu traço se definiria a partir deste livro de poesia.
Sem uma produção prolífica, a poeta publicou poucos volumes de poesia. Sua obra contém algumas centenas de poemas publicados em cinco décadas, o que dá doze livros. Além dos três já citados, Sal, de 1962, Muito divertido, de 1967, Todo caso, de 1972, Um grande número, de 1976, Gente na ponte, de 1987, Fim e começo, de 1993, Instante, de 2002, Dois pontos, de 2005, e Aqui, de 2009.
Wislawa Szymborska também atuou como cronista, com produção que rendeu três edições em livro, e a sua temática era bem ampla, pois envolvia literatura, biografias, culinária, autoajuda, cães e uma espécie de faça você mesmo. Muitas de suas crônicas são caracterizadas pelo humor da poeta.
Ela ganhou muitos prêmios literários na Polônia e no exterior, incluindo o prêmio Goethe, na Alemanha, em 1991, o prêmio Herder, na Áustria, em 1995, e o prêmio do Pen Club polonês, em 1996.
Portanto, o seu caminho para o Nobel foi pavimentado na esteira de várias premiações. A poeta se saiu bem como escolhida para estas láureas que impulsionam a carreira de qualquer escritor, claro, com talento reconhecido e não por mágica.
Wislawa Szymborska, falando do período histórico em que viveu, compartilhou com os escritores que eram os seus contemporâneos, o fato de terem vivido no entreguerras, atravessando a Segunda Guerra Mundial, como terem vivido por quatro décadas sob o totalitarismo comunista.
Os poetas desta geração que se destacam, junto com Szymborska, além de Milosz, são Zbigniew Herbert e Tadeusz Rózewicz. E a reflexão destes poetas sobre a condição humana e o testemunho sobre a barbárie do século XX estão presentes na poesia desta geração.
POEMAS
CHAMANDO POR YETI (1957)
REPENSO O MUNDO: A poeta aqui enuncia em uma temática bizarra e criativa um poema que faz uma edição bem interessante, e que se propõe a repensar o mundo, no que temos : “Repenso o mundo, segunda edição,/segunda edição corrigida,/aos idiotas o riso,/aos tristes o pranto,/aos carecas o pente,/aos cães botas.” E a poeta Szymborska destina a um público diverso, povoado de idiotas, tristes e demais espécies, esta sua edição, e que começa por um glossário da natureza, um tipo estranho e poético de um livro da vida, no que segue : “Eis um capítulo :/A Fala dos Bichos e das Plantas,/com um glossário próprio/para cada espécie.” (…) “Essa há muito pressentida,/de súbito revelada,/improvisação da mata./Essa épica das corujas!/Esses aforismos do ouriço/compostos quando imaginamos/que, ora, está adormecido!”. O poema cantarola, faz um tipo de galimatia com esta sua temática que desvela a natureza, e a poeta segue : “O tempo (capítulo dois)/tem direito de se meter/em tudo, coisa boa ou má./Porém – ele que pulveriza montanhas/remove oceanos e está/presente na órbita das estrelas,/não terá o menor poder/sobre os amantes”. Um tipo de dom onipotente, sem mais, toma a ribalta do poema, a poeta está em um estado de uma loucura lúdica, em que move as coisas, e segue : “O sofrimento (capítulo três)/não insulta o corpo./A morte/chega com o sono.”. Ela agora fala do sofrimento e da morte, os maiores desafios da existência, para todos sem exceção, em algum trecho deste tempo enigmático, no que vem : “E vais sonhar/que nem é preciso respirar,/que o silêncio sem ar/não é uma música má,/pequeno como uma fagulha,/a um toque te apagarás.” (…) “Morrer, só assim. Dor mais dolorosa/tiveste segurando nas mãos uma rosa” (…) “O mundo, só assim. Só assim/viver. E morrer só esse tanto./E todo o resto – é como Bach/tocado por um instante/num serrote.”. Que o viver, intensamente e sem prestar satisfações, está sim nos que enfrentam a morte, a dor e o sofrimento, e que descobre a felicidade uma vez lida após o martírio da morte, esta tensão ensina o valor de todas as coisas em sua dimensão completa, se tem o que se lutou, o poema encerra por morrer este tanto, e só assim viver e saber viver.
SAL, 1962
MUSEU: A poeta chama de museu este poema que fala, na verdade, dos termos que não se acabam, que se acomodam e se emboloram, a coisa envelhece e apodrece, pois não se decide em cessar, no que temos : “Há pratos, mas falta apetite./Há alianças, mas o amor recíproco se foi/há pelo menos trezentos anos.” (…) “Por falta de eternidade/juntaram dez mil velharias./Um bedel bolorento tira um doce cochilo,/o bigode pendido sobre a vitrine.” (…) “Quanto a mim, vou vivendo, acreditem./Minha competição com o vestido continua./E que teimosia a dele!/E como ele adoraria sobreviver!”. A poeta, por sua vez, contraria esta fatalidade que é escolha, nada mais que isto, e se rebela com a sua independência existencial, sua liberdade lhe cai bem, competindo com o vestido, mas buscando as suas medidas. Ela vai vivendo, e a vida é isto, não engessa, luta teimosamente para ter a sua própria razão. Aqui me lembro quando Sophia de Mello Breyner Andresen, meu tema anterior, falava da poesia como produto acabado de uma obstinação.
RECITAL DA AUTORA: A poeta reclama que não pode ter uma multidão, como tem um boxeador, algumas pessoas vêm à sala, e o resto é parente, então a poeta se queixa à musa : “Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir./Nos recusaste a multidão ululante./Uma dúzia de pessoas na sala,/já é hora de começar a fala./Metade veio porque está chovendo,/o resto é parente. Ó Musa.”. O poema segue em sua descrição de ser poeta, e as imagens brotam de um modo bem interessante, com uma coda que se volta à musa depois que a poeta tenta entender este seu ofício e se começa a leitura : “As mulheres adorariam desmaiar nesta noite outonal,/e vão, mas só ao assistir a uma luta colossal.” (…) “Não ser boxeador, ser poeta,/estar condenado a duras florbelas,” (…) “Na primeira fila um velhinho sonha docemente/que a finada esposa ressuscitou e/assa para ele um bolo com passas./Com fogo, mas não alto, para o bolo não queimar,/começamos a leitura. Ó Musa.”.
MUITO DIVERTIDO, 1967
A ALEGRIA DA ESCRITA: A corça ergue a cabeça, a poeta indaga sobre este caminho do bicho, esta corça está apoiada na verdade e sonda algo, no que vem : “Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?/Vai beber da água escrita/que lhe copia o focinho como papel-carbono?/Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?/Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade/sob meus dedos apura o ouvido.” E a corça se ajeita para a folha branca de onde as palavras irão brotar : “Na folha branca se aprontam para o salto/as letras que podem se alojar mal/as frases acossantes,/perante as quais não haverá saída.” Os poetas vão à caça desta corça, que nesta imagem é o escape veloz das palavras, a caçada é feroz, no entanto : “Numa gota de tinta há um bom estoque/de caçadores de olho semicerrado/prontos a correr pena abaixo,/rodear a corça, preparar o tiro.” E a poeta enlaça este tear de um destino independente, em que um feixe de signos é erguido ou decodificado, o comando da existência pelo poeta em seu poema se dá plenamente, no que temos : “Sem meu querer nem uma folha cai/nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.” (…) “Existe então um mundo assim/sobre o qual exerço um destino independente?/Um tempo que enlaço com correntes de signos?/Uma existência perene por meu comando?”. A poeta então canta a alegria da escrita, uma vingança existencial pela mão mortal, aqui está o poder supremo, toda escrita aspira à onipotência : “A alegria da escrita./O poder de preservar./A vingança da mão mortal.”
ÁLBUM: A poeta retrata a família e fala do amor, neste caso, de pessoas que não sofreram nem de tísica e nem de suicídio, se tivessem sido vítimas de um romantismo frouxo, sem musculatura, que sucumbe ao menor sinal de desdita, no que temos : “Ninguém na família nunca morreu de amor./O que passou, passou, mas nada que alimente um mito./Romeus tísicos? Julietas diftéricas?/Alguns até atingiram uma idade senil./Nenhuma vítima de falta de resposta/a uma carta manchada de lágrimas!”. Não há aqui aquela afetação aguada de quem desmorona num amor excessivo e mole, ou ainda, num derramamento insensato que não se fia num eixo firme de sua própria existência e valores, no que segue : “Mesmo essa de coque extático/e olheiras fundas como depois de uma folia/se foi em meio a uma grande hemorragia/mas não para ti, dançarino, e não com pena. Talvez alguém muito antes do daguerreótipo -/mas desses no álbum, nenhum, que eu tenha sabido./As tristezas se desfaziam em risos, corriam os dias/e eles consolados sumiam-se de gripe.”. A resiliência é um dos caminhos que ergue um temperamento sábio, a fortaleza, uma das virtudes cardeais, neste caso, não nos parece gratuita, mas o dom da vida e da sobrevida, e um dos caminhos, não de suportar as desditas, mas de obter a vitória.
MUITO DIVERTIDO: A poeta descreve aqui a história de uma obstinação, tudo aqui se ergue grandiosamente, tudo pleno de liberdade e de razão, próprio aos obstinados, no que temos : “Anseios de felicidade/anseios de verdade/anseios de eternidade, olhem só!”. O anseio e o anelo são obsediantes, tudo conspira a responder positivamente a esta vontade fortíssima que irrompe em seu ímpeto, a descrição da poeta aqui enuncia a personalidade que se constrói e diz o que é : “Mal distinguiu o sono do despertar,/mal deduziu que ele é ele,/mal talhou em mão a antiga barbatana/pederneira e foguete,/fácil de se afogar numa colher de oceano,/tão pouco divertido que nem diverte o vazio,/só vê com os olhos,/só ouve com os ouvidos,/o recorde de sua fala é o modo condicional,/com a razão incrimina a razão,/em uma palavra : quase ninguém,/mas a cabeça cheia de liberdade, onisciência e o ser/acima da carne insensata,/olhem só!”. Ao fim, a poeta pode concluir em sua coda que a pessoa que ela descreve, em todo este terror volitivo implacável, de que se trata de uma pessoa divertida, uma pessoa de verdade, no que temos : “Só um pouco adiante, adiante ainda um instante,/talvez o tempo do piscar de uma galáxia pequenina!/Que finalmente grosso modo se revele/quem ele será, já que é./E é – obstinado./Obstinado, deve-se admitir, e muito./Com essa argola no nariz, nessa toga, nesse suéter./Seja como for, divertido./Pobre-diabo./Uma pessoa de verdade.”
TODO CASO, 1972
IMPRESSÕES DO TEATRO: A poeta descreve aqui o teatro trágico, e vai ao encerramento em que as cenas fatais são desfeitas, como o fim do espetáculo em que os atores se desfazem de seus atos fatais, a morte revertida, a ressurreição que se dá ao desmontar o proscênio : “Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato :/o ressuscitar dos mortos das cenas de batalha,/o ajeitar das perucas e dos trajes,/a faca arrancada do peito,/a corda tirada do pescoço,/o perfilar-se entre os vivos/de frente para o público.” Aqui sai a suicida, com os meneios de sua cabeça cortada, um toque de humor de Szymborska : “As reverências individuais e coletivas :/a mão pálida sobre o peito ferido,/as mesuras da suicida/o acenar da cabeça cortada.” Sobre as reverências, personagens inimigos se juntam à saudação, a poeta segue : “As reverências em pares :/a fúria dá o braço à brandura,/a vítima lança um olhar doce ao carrasco,/o rebelde caminha sem rancor ao lado do tirano.” (…) “A entrada em fileira dos que morreram muito antes,/nos atos três e quatro, ou nos entreatos./A volta milagrosa dos que sumiram sem vestígios.”. Ao fim, todos os atores vão saindo, as flores, toda uma cena que se fecha nas cortinas, e a coda fatal, a poeta é esganada : “Mas o mais sublime é o baixar da cortina/e o que ainda se avista pela fresta :/aqui uma mão se estende para pegar as flores,/acolá outra apanha a espada caída./Por fim uma terceira mão, invisível,/cumpre o seu dever :/me aperta a garganta.”
ELOGIO DOS SONHOS: A poeta descreve o sonho, e aqui, neste tecido onírico, toda a plasticidade dos movimentos torna tudo possível, no que temos : “Nos sonhos/eu pinto como Vermeer van Delft.” (…) “Falo grego fluente/e não só com os vivos.” (…) “Tenho talento,/escrevo grandes poemas.” (…) “Não reclamo :/consegui descobrir a Atlântida.” (…) “Fico feliz de sempre poder acordar/pouco antes de morrer.” (…) “Assim que começa a guerra/me viro do melhor lado.” (…) “Sou, mas não tenho que ser/filha da minha época.” (…) “Faz alguns anos/vi dois sóis./E anteontem um pinguim./Com toda a clareza.”. Uma clarividência se mistura magicamente a dons onipotentes, tudo se cria e se recria incessantemente, e todas as faculdades espirituais estão acesas, o sonho para a poeta aqui neste poema é uma autorrealização plena e um estado alterado da mente em que tudo é permitido.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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