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‘Vamos defender a terra como quem defende sua mãe, com nossas vidas’

[Podcast] Vilson Jaguareté, vereador indígena de Aracruz, fala dos desafios políticos no âmbito municipal, estadual e federal

Em 2020, Vilson Jaguareté, liderança Tupinikim, foi o vereador mais votado de Aracruz (norte do Estado) pelo PT, com 1.325 votos, tornando-se assim o primeiro indígena eleito no município capixaba, o único que possui territórios demarcados. “Estou sempre militando pela causas indígenas, sempre buscando ocupar os espaços importantes, inclusive agora o político, em prol dos povos indígenas”, diz.

Na entrevista exclusiva ao Século Diário, ele fala sobre sua trajetória política, sua atuação como parlamentar, e reflete sobre o impacto dos grandes empreendimentos para as comunidades, a construção de uma política indígena municipal, e outros desafios na Câmara. Também aborda o atual cenário nacional permeado de ameaças e retrocessos.

Os Tupinikim e Guarani do Espírito Santo realizam uma campanha de doações para apoiar a ida para o Acampamento Terra Livre em Brasília. A luta local tem sido divulgada em páginas como @povostupinikim no Instagram.

Confira abaixo as melhores partes da entrevista em texto ou a íntegra em áudio no player a seguir. Acompanhe essa e outras edições do Século Diário Entrevista em podcast no Spotify e outras plataformas de streaming.

Dois aspectos chamam atenção na sua eleição: o fato de você ser o primeiro vereador indígena eleito para o cargo no município e ter sido o mais votado. Por que considera que nunca um indígena havia sido eleito vereador no município?

Os povos indígenas Tupinikim e Guarani, infelizmente, anos atrás, nas outras eleições, a gente nunca se organizava direito. Sabíamos da importância de ter um representante tanto na Câmara Municipal como também pensamos agora em outras instâncias, como estadual, e vamos lançar também como candidato a deputado federal um Guarani na próxima eleição.

Mas nunca tínhamos nos organizado. Sempre os partidos, as pessoas do entorno da terra indígena, nos dividiram. Aí resolvemos fazer inverter a lógica. Ao invés de cada um se indicar, a comunidade decidiu fazer um plebiscito em que cada um escolhesse seu representante, seu candidato.

Até então eu nunca tinha aceitado vir candidato a nada e aceitei esse desafio, porque senti que dessa vez teríamos a condição, sim, de fazer um vereador, inclusive o mais votado, porque nós temos votos suficientes para isso.

Então nós percebemos e inclusive estudamos as regras do jogo, como funciona a eleição. Contamos também com vários aliados importantes, do partido inclusive. Antes eu já era filiado ao Partido dos Trabalhadores, nós temos um contato muito forte com a Iriny Lopes [ex-deputada federal e atual deputada estadual], com o Claudio Vereza [ex-deputado estadual] que agora se aposentou. Eles sempre nos apoiaram, sempre nos instruíram, e isso também foi muito importante nessa caminhada até aqui, não só no período eleitoral, mas agora também. Estou aprendendo muito ainda como legislador municipal e conto muito com o apoio deles.

Você foi cacique na época da luta pela retomada do território, período de muitas mobilizações…

Foi um período difícil, lutando contra uma multinacional e também contra o próprio governo do Espírito Santo, na época era o Paulo Hartung, que tinha muita resistência às mobilizações sociais. Apesar de ser na época do governo Lula, também tinha muitos problemas com a Fundação Nacional do Índio [Funai] que não reconhecia o nosso direito, não fazia direito o Ato Administrativo da terra, então tínhamos que fazer muitas mobilizações para que fosse cumprida a Constituição no que se refere à demarcação. Foi realmente muito difícil, uma época complicada.

Vilson em 2006, em reunião com Lula e Paulo Hartung no período de luta por demarcação do território. Foto: Ricardo Stuckert

Logo de início, seu mandato já trabalha no projeto de uma política indigenista municipal. Como tem sido esse processo?

Um dos desafios que a Comissão de Caciques e as comunidades entenderam em relação à importância de se ter um vereador para legislar em prol das comunidades indígenas, é por não ter políticas voltadas aos povos tradicionais, sobretudo os povos indígenas. Infelizmente, também para negros tem poucas coisas. Mas uma das nossas bandeiras, nosso carro- chefe de estar na Câmara Municipal, é promover essas políticas, junto com o executivo, é claro.

De vários prefeitos que já passaram pelo município de Aracruz, todos eram categóricos em negar os direitos aos povos indígenas, dizendo que na saúde quem cuida é a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), quem cuida da educação é o governo federal. Então nunca tinha políticas municipais para os povos indígenas.

E de certo modo, o prefeito tinha um pouco de razão, porque não tem nada regulamentado. Vamos falar da saúde, que é um ponto muito crítico, já são vários anos de militância para tentar resolver um problema que nem sempre é resolvido, porque não tem a participação de todos os entes federados, inclusive do Estado também. Temos um desafio grande que é criar também uma política estadual complementar para saúde indígena.

Então esses prefeitos, esses gestores, sempre diziam isso. E essa política em todos os aspectos de todas as pautas, cultural, ambiental, vem para tirar esse vazio, para complementar isso. Nós também, mais para frente, vamos articular com a Iriny para propor alguma coisa a nível estadual. Então essa política vem para fechar essa lacuna ou pelo menos tentar resolvê-la.

Fala dessa política municipal indigenista, quais são os principais desafios? Tem conversado com lideranças de outros lugares para conhecer outras experiências? Quais as principais questões a serem levantadas?

Essa política é um desafio, porque não temos exemplos no país de política indígena no âmbito municipal. E por isso estamos tendo que construir praticamente do zero. Tem poucas coisas no país, mas muito soltas. Com essa amplitude não temos nada semelhante.

A aprovação na Câmara da comissão especial que está nos auxiliando a elaborar, pensar essa política, tem sido positiva, porque como é uma coisa desafiadora e de muito trabalho, tem muitas outras boas pessoas, inclusive da Câmara, envolvidas nessa questão.

Internamente, um desafio que eu acho importante, vai ser depois a avaliação dos outros vereadores para aprovação. Eu vejo isso com um pouco de cautela, porque na política as coisas mudam. Hoje o clima é harmônico, amanhã talvez, por questão de eleição daqui a pouco para deputado federal, governador, as coisas politicamente podem mudar um pouco. Isso preocupa, mas estamos fazendo toda articulação para que isso não seja um problema.

Pelo que você diz, se houver um bom resultado, poderia servir de referência para outros municípios do país também pensarem essa possibilidade de políticas municipais mais estruturadas.

Sim, nós temos vários contatos de outras lideranças que têm elogiado esse trabalho. Estão acompanhando o desfecho dessa política, para que ela seja replicada. A gente quer trazer essa inovação para o país e que isso também seja estímulo para outros povos que ainda não conseguiram se organizar politicamente para ocupar esses espaços.

Eu quero realmente algo que faça diferença para o nosso povo, para o povo de Aracruz, porque isso vai ser muito bom também de forma geral para o município e o cidadão. E que seja também estímulo para outros, como os negros, que seja uma bandeira importante para outras pessoas que precisam estar representadas na Câmara, com outras políticas de outros povos e outras bandeiras também.

Vilson Jaguareté tomando vacina contra Covid-19. Foto: Divulgação

Uma questão central para os povos indígenas em Aracruz é o impacto das grandes empresas. É o único lugar com territórios indígenas demarcados no Espírito Santo e há uma série de empreendimentos que afetam as formas de sobrevivência das comunidades. Como pensa sua atuação como legislador nesse sentido?

Segundo os dados da Funai de Brasília, não existe no país precedente, exemplo, como o nosso aqui, de vários empreendimentos no entorno da terra indígena. Tem vários empreendimentos que chegaram, que estão se instalando aqui. Tivemos a notícia de que não teve a sanção do Bolsonaro sobre a inclusão de Aracruz na Sudene. Mas se o veto for derrubado pelo Senado, pode atrair ainda mais empreendimentos para cá.

É muito complicado falar disso. É exatamente nesse ponto que a sociedade nos julga como um entrave para o município. Porque tem um lado bom da história, que gera empregos, gera divisas para o município e Estado. Isso é muito bom. Só que nem sempre o empreendedor cumpre o que está na legislação, o que está nas regras dos licenciamentos, em que teria que constar os povos indígenas, tem que fazer um estudo de impacto desses empreendimentos nas terras indígenas.

E se falando de vários empreendimentos, a Funai também não sabe, infelizmente, ou não sabe formas de lidar com isso, porque quando faz os termos de referência, são sempre ‘copia e cola’, não tem termos de referência específicos. Ainda mais que não tem um estudo de impactos integrados, impactos sinérgicos em relação aos empreendimentos. Várias empresas pequenas, de médio e grande porte, dizem que poluem pouco. Mas não têm um estudo integrado de todos os empreendimentos impactando. E por consequência, também não tem estudo que aponte que tem que fazer compensação ou mitigação desses impactos de forma complementada.

Isso é muito ruim para os povos indígenas, porque a maioria das empresas fala que seu impacto é pequeno. Mas somando tudo, não se tem a dimensão certa nem a compensação acerca disso aí. Então a gente fica nesse vácuo, porque mesmo aquelas que não cumprem, não são penalizados, suas atividades seguem funcionando normalmente, e a gente fica aqui sempre com a parte ruim.

Também tem a questão da consulta prévia que está nos acordos internacionais firmados pelo Brasil. Elas não acontecem?

A questão da consulta é ainda pior. Teria que ver a viabilidade ou não do empreendimento em relação às comunidades indígenas. Mas quando há estudo, isso geralmente só acontece depois que o empreendimento já está funcionando, com todas as licenças, quando já estão operando na verdade.

Isso a gente já está até acostumado. Mas a gente espera agora, pelo menos é a minha expectativa como legislador, que se consiga, pelo menos, que comunidades sejam devidamente compensadas.

Falando da questão nacional, têm sido realizadas manifestações sobre temas muito importantes relacionados com os indígenas, que são a tese do Marco Temporal e a PL 490. Como esses projetos impactam para os povos originários e podem afetar os povos aqui no Espírito Santo?

Estamos muito preocupados não só conosco, mas com todos os parentes [indígenas de outros locais e etnias], que estão passando ou que já passaram por esse processo tão árduo que é demarcar os nossos territórios indígenas.

Primeiro, se essa PL passasse, na verdade não teria mais demarcação de terra no Brasil. Se na Funai já é tão difícil de manter a Constituição e que tenha o estudo antropológico, que é o principal que reconhece a terra indígena como tradicionalmente ocupada ou não…passando isso para o Congresso, jamais com todos os ruralistas, bancada da bala, bancada evangélica, com certeza eles não deixaram iniciar esses processos e ainda permitiram retrocesso nos processos que já estão em curso.

Para o nosso caso também é igualmente importante, porque coloca em xeque nossas demarcações, porque o marco temporal abriria precedente jurídico para que nossas terras recentemente homologadas sejam revistas. Ainda existem alguns posseiros, ao menos cinco, em nosso território, que ainda não saíram por definitivo da nossa terra homologada em 2010, e poderiam se valer dessa nova regra para criar uma situação jurídica nova.

Tanto é que uma dessas ações que tramita na Justiça Federal de Linhares teve, salvo engano em 2019, um juiz federal que veio aqui exatamente para fazer essas ameaças de revogação de todo território ou dessas áreas. E isso já sem a aprovação desses projetos. Imagina então com aprovação.

É muito preocupante. Temos visto algumas reversões no país, de terra como a nossa, já homologada, voltar praticamente para a estaca zero. Então a gente é solidário a essa causa nacional, estive lá [em Brasília] e inclusive levei meu filho, que hoje tem 15 anos de idade. Na época da luta pela terra, minha esposa estava grávida e participamos de uma reintegração de posse que a polícia fez para Aracruz Celulose.

Na verdade ele me pediu para ir. Temos que transmitir a gravidade para nossos jovens, porque essa nossa luta veio de outras gerações. Ela não acaba.

O vereador participou junto com seus filho das últimas manifestações em defesa dos direitos indígenas em Brasília. Foto: Divulgação

Tem um ponto que me orgulho muito que é uma questão de vida. Quando esse juiz federal esteve no território com essa ameaça velada de revogar as portarias pelas quais lutamos tanto, eu falei com ele. Esse empresário que ainda está em parte do nosso território falou que já tinha gastado milhões e que essa terra era questão de honra para ele ganhar.

Eu falei para o juiz que, para nós, a terra é questão de vida. Eu quero saber se esse empresário terá descendentes para continuar essa briga, porque nós vamos continuar. Meu filho está sendo preparado, o filho do meu filho também será preparado para essa missão. Queria saber se ele tem descendentes para isso, porque nós vamos batalhar por gerações.

Por mais que esses projetos venham ameaçando nossos direitos, vamos defender a terra como quem defende sua mãe, com as nossas vidas. Falamos para o juiz e deixamos muito claro para os governantes que sempre podem esperar de nós a luta por esse território, como sempre fizemos. Não vai ser fácil. Podem fazer o que quiserem para tentar nos dizimar, nos tirar do território, mas tirar a gente daqui só se estivermos mortos

Falo isso por conta do sentimento e ligação que a comunidade tem com o território. Ninguém vai abrir mão, ninguém sairá daqui da forma como eles banalizam e pensam.

Queria perguntar sobre essa conjuntura nacional, em que há ataques aos direitos dos povos e comunidades tradicionais e outras questões que impactam para o povo brasileiro. O que esperar dos próximos anos? Tem eleições ano que vem, mas ainda tem este ano com manifestações acontecendo. Como enxerga essa situação? O que vislumbra para o futuro?

A conjuntura política, falando de Brasília, é extremamente agressiva aos povos tradicionais e aos povos indígenas. Só que nós também nunca tivemos vida fácil. Por exemplo, no governo Lula e no governo Dilma, tivemos uma série de dificuldades. Nada comparado a esse momento, em que agora estão indo para violência de fato, esse governo tem incentivado o genocídio, o confronto, a agressão física. Na questão policial, no governo Lula não tivemos esse tipo de violência, mas também nossos direitos foram negados em alguns momentos, tivemos que lutar muito.

Espero que num cenário a curto prazo, isso se reverta. O povo brasileiro não aguenta mais esse governo irresponsável, esse desgoverno. Mas também, como sempre, não esperamos vida fácil. Com o Lula com grandes chances de ser candidato e eleito, sabemos que, mesmo assim, teremos sempre novas batalhas. Aqui no Estado e município também nunca foi diferente, sempre tivemos várias dificuldades políticas. Estamos acostumados com isso, nunca tivemos vida fácil politicamente falando sobre nossos direitos.

Vilson em ação solidária durante a pandemia junto ao PT e MST. Foto: Divulgação

Você falou de candidatura Guarani para deputado federal. Como estão se preparando para as Eleições 2022?

Estamos projetando, ainda em construção com a Comissão de Caciques, que delibera sobre esses pontos, para construir de novo o nome do cacique Toninho, que já foi candidato a deputado federal e foi bem votado em relação aos poucos recursos e tempo que tivemos para fazer a campanha. Agora estamos mais fortalecidos com o êxito das eleições municipais, queremos conscientizar não só povos indígenas mas simpatizantes dos movimentos como o MST, conversando com líderes para fortalecer o nome, nos apoiar nessa empreitada, mas também com a sociedade em geral do Espírito Santo, colocar que precisamos ter essa pluralidade nas instâncias políticas.

Cacique Toninho é uma pessoa que tem muito conteúdo, um militante, um cara politicamente muito bem preparado. Não é só para ter um indígena lá, é para ter uma pessoa com a consciência dele no Congresso Nacional. O País vai ganhar muito se tiver essa representatividade.

E a nível estadual, pensam também em lançar uma candidatura indígena?

Apesar das conversas nas bases, ainda não temos ainda consenso sobre candidatura para deputado estadual. O próprio partido está em discussão sobre essa questão. Mas a princípio, a proposta é de não lançar candidatura estadual, embora haja alguns movimentos falando nisso. Aqui a gente participa pouco desses momentos de escolha dos candidatos que vão participar dos pleitos. Precisamos nos organizar e também ter uma voz dentro do partido, porque às vezes as coisas vão muito de cima pra baixo e não é construído junto às bases quem vai ser candidato ou não. A gente tende a mudar isso, não sei se será nessa eleição, se há tempo hábil para isso. Mas ainda não tem o consenso sobre se lançaremos candidato para deputado estadual.

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